Em 2001, um grupo de amigos que cresceram no Lugar dos Anjos, em Santa Maria, jantavam quando tiveram uma ideia: criar uma associação que o dinamizasse. Neste sítio, onde o céu se mistura com o mar, criaram, do zero, aquele que é o maior festival de Blues do país e que há mais de 20 anos traz bandas de todo o mundo e não para de crescer. A LUZ convida-o e embarcar nesta viagem rumo aos Açores e a deixar-se levar pelo seu ritmo.
E se alguém lhe dissesse que é impossível não se apaixonar por Blues na ilha de Santa Maria, nos Açores? É o berço geológico do arquipélago e foi a primeira das nove ilhas a ser descoberta e a ser povoada. Quando pensamos em qualquer uma delas, invadem-nos o pensamento imagens paradisíacas. O mar, os vales e as montanhas, os vários tons de verde, a calma, a leveza, a praia. Todas as paisagens podiam ser cenário de qualquer um daqueles filmes que nos fazem querer mergulhar no ecrã. Agora, mais do que nunca (por todas as monstruosidades que acontecem no mundo), procuramos ar, tempo para respirar. Os Açores dão-nos isso. Mas esta ilha, em particular, dá-nos muito mais.
«Eles não sabem, nem sonham/ que o sonho comanda a vida/ Que sempre que o homem sonha/ o mundo pula e avança/ como bola colorida/ entre as mãos de uma criança», escreveu António Gedeão e canta Manuel Freire, na Pedra Filosofal. Imaginemos que não existe eletricidade. Que a água não é canalizada. Que o mar que circunda a nossa ilha tem tubarões e não nos permite aproveitá-lo na sua plenitude. Que, por vezes, a única coisa que temos para comer é o peixe que conseguimos apanhar. Essa realidade poderia, facilmente, levar-nos a desistir. Mudar de sítios, de vida. Procurar novos voos, um sítio onde os recursos e condições já existam. Felizmente, não foi o caso de um grupo de cinco amigos que, apesar de terem seguido as suas vidas, lutaram pelo Lugar dos Anjos, tendo conseguido colocá-lo nas bocas do mundo. Mais: torná-lo na capital do Blues em Portugal trazendo há 20 anos pessoas de todo o globo para tocar e ouvir música.
A edição deste ano do Festival Santa Maria Blues começou no dia 18 de julho. E, ao longo de três dias, recebeu bandas como Robbert Duijf Band, da Holanda; Gringo’s Washboard Band, de Portugal; Justina Lee Brown, Da Nigéria; Sugar Blue, dos EUA; Baba Sissoko & The Mediterranean Blues; do Mali; a lenda Bobby Rush e ainda Sari Schorr, ambos dos EUA. Nas primeiras duas noites, a festa acaba com dois DJ’s portugueses: DJ Wise Guy e DJ Hélder F.
Unidos pela música
Apanhámos o avião às 13 horas do passado dia 18 e, já no aeroporto, sentimos um pouco da energia do que nos esperava. Na porta de embarque é perfeitamente percetível que a maior parte das pessoas têm o mesmo destino, todas elas vão com a mesma intenção: vivenciar o festival, conhecer os ‘Anjos’, como lhe chamam os locais. Bobby Rush, de 90 anos, já cá está e é o primeiro a entrar para o avião. A verdadeira lenda do Blues, em atividade desde 1951, atua no sábado, mas veio mais cedo para conhecer a ilha. Na fila, alguns grupos e casais apercebem-se da sua presença (qualquer pessoa amante de blues conhece o astro que já ganhou 3 Grammys e 13 Music Awards) e ouve-se que, alguns deles, falam do festival. É o segundo ano de Carla e Paulo, que vivem em Lisboa. Estavam de férias na ilha há dois anos quando ouviram falar sobre a existência do evento. «Decidimos ir espreitar e ficámos rendidos», conta Carla, de 45 anos. Sempre gostou de Blues, mas nunca ouviu o género com muita regularidade. Desde 2022 que isso mudou. «É mesmo giro, porque alguns artistas que atuaram nessa edição marcaram-nos de tal maneira que agora ouvimos regularmente em casa», acrescenta Paulo, de 43 anos. Desde essa altura que tentam marcar férias para estes dias e, para o ano, planeiam trazer amigos. «Os bilhetes são caros e têm de se comprar com antecedência, mas vale a pena. Assim, saímos do Continente e vemos artistas de renome», justifica. Além de Bobby Rush, outros artistas viajam no mesmo avião. Percebemos isso pelo seu estilo típico do género musical. Talvez estejamos a cair em estereótipos, mas não de uma forma pejorativa. As boinas na cabeça, os óculos de sol, roupas largas com padrões. Ficámos ao lado de dois bateristas de bandas diferentes que se encontram expectantes por aquilo que encontrarão quando o avião aterrar. Christof Jaussi é americano e toca na banda Justina Lee Brown que será a primeira a atuar na sexta-feira. Já Deguess Lago é italiano com raízes africanas e toca com Baba Sissoko & Mediterranean Blues que abrirá a festa no sábado. Passamos a viagem a conversar. Os dois artistas (um americano e o outro italiano), querem saber mais sobre Portugal. Sobre os hábitos e a gastronomia.
A atmosfera da ilha
Ao chegar à ilha, sente-se uma grande diferença no ar. E apesar de estar muito abafado, o céu começa a ficar nublado e, pouco tempo depois, começa a chover. No entanto, a chuva não estraga a atmosfera e a energia do staff que vai aparecendo no hotel.
Estamos hospedados na Vila dos Lobos, a sensivelmente 15 minutos de carro do Lugar dos Anjos. No Hotel Praia de Lobos, a senhora da receção recebe-nos com um sorriso. Conhece bem António Monteiro, diretor geral da associação Escravos da Cadeirinha e garante que nos vamos surpreender com a qualidade do Festival. «Sabe que somos cerca de 5 mil e 500 habitantes na ilha, somos muito poucos. O festival recebe o mesmo número de pessoas. Nas últimas edições tem recebido 5 mil pessoas. Vêm das outras ilhas, do continente, de outros países. Isto mexe muito com toda a dinâmica e a economia da ilha», garante. Segundo a rececionista, de ano para ano, o número de «festivaleiros» foi crescendo e há uma diferença dos turistas que chegam nesta altura. «Os hotéis esgotam. Há pessoas que vieram uma vez e que agora vêm todos os anos, são pessoas diferentes daquelas que nos chegam em Agosto, percebe? Vê-se que têm mais dinheiro, que apreciam mesmo este estilo de música. O senhor que passou, por exemplo, é de São Miguel e vem há já alguns anos com a mulher. Fica sempre aqui», conta, acrescentando que, além disso, há cada vez mais americanos a escolherem Santa Maria para viver. Recorde-se que a emigração portuguesa para o Canadá é um fenómeno relativamente recente, que teve início apenas na década de 1950. Agora, de acordo com a também moradora, parece que as gerações seguintes destes imigrantes estão a voltar. O seu marido é taxista e, pela afluência de trabalho, pouco se têm cruzado em casa. Há sempre pessoas que querem ir para os Anjos. «A pé não dá!», frisa.
Apanhamos o transfer para o recinto. O sol ainda não se pôs, o que significa que o veremos no local perfeito. No Lugar dos Anjos, o céu mistura-se com o mar. Quem desce a estrada pintada de pasto seco e gado, não vê a pequenina vila repleta com casinhas brancas que se encontra na ponta mais baixa, bem no litoral. Há apenas 10 casas habitadas, com cerca de 25 moradores. No verão o número sobe pelo regresso dos americanos que têm aqui as suas casas de férias. «A primeira vez que desci esta estrada perguntei ao meu sogro para onde é que ele me estava a levar. Assustei-me. Parecia que ao descer não havia mais nada», lembra Douglas, um canadiano que mora na ilha há 15 anos. «Assim que comecei a avistar as casinhas lá em baixo, apaixonei-me. Pareceu-me ver a DisneyLand. Sou casado com uma imigrante portuguesa. Vínhamos de férias e, a dada altura, decidimos regressar. Adoro morar aqui», continua. «As paisagens são maravilhosas, a comida é incrível, as pessoas… Tudo é bom! É um lugar barato e calmo para se viver», acrescenta. No ano passado, pediu para fazer parte do staff do festival e fá-lo com todo o entusiasmo, transportando os artistas e as equipas. São cerca de 200 voluntários a trabalhar no evento este ano. Desde miúdos a graúdos. Muitos deles recordam-se do festival em 2001. Agora, são os seus filhos que começam a seguir o legado. Há quem monte as barracas de madeira do bar exterior, quem coloque as mesas, quem organize o público, quem lave a loiça e a seque, quem sirva os pratos, quem trabalhe na venda de artesanato, quem venda as senhas…
Comidas tradicionais
Chegámos ao recinto com vista para o Atlântico. Já se veem pessoas na fila para a grande tenda do restaurante que hoje servirá apenas as famosas sopas do império. Nas primeiras edições do evento eram os moradores que em conjunto preparavam o “banquete”. Cada pessoa preparava uma panela de comida ou sobremesa em casa e, em conjunto, era possível alimentar todos os festivaleiros. Com o passar do tempo e o aumento da dimensão do evento, a dinâmica mudou. No entanto, a oferenda das sobremesas continua. Em troca, os Escravos da Cadeirinha oferecem bilhetes aos locais.
Atrás da tenda, o senhor Arsénio – com a sua equipa de voluntários – já está a trabalhar há seis horas. Para fazer estas famosas sopas, coloca-se a água a aquecer nas panelas de ferro sobre o lume de lenha. Depois adiciona-se a carne de vaca previamente limpa do sebo e lavada em água quente. Tempera-se de sal, coloca-se uma cebola grande cortada em quartos ou várias cebolas mais pequenas. Junta-se algumas colheres de banha e coloca-se o repolho cortado em pedaços (apenas para dar paladar, pois quando a carne estiver cozida não haverá vestígio de repolho). Enquanto a carne coze, parte-se o pão de trigo em fatias grossas e dispõe-se em camadas nas terrinas, antigamente de barro, hoje de metal. Em cima do pão, coloca-se um ramo de hortelã e um ramo de endro e está pronto a servir. «Para hoje usámos 160 quilos de carne», revela Arsénio que tem 63 anos e cozinha este prato desde os 15. Estas sopas, explica o cozinheiro, estão relacionadas com as celebrações do Divino Espírito Santo, uma tradição arreigada nos Açores, herança da Ordem de Cristo e dos Franciscanos, que tiveram grande influência na vida religiosa do arquipélago. A grande festa é no sétimo domingo após a Páscoa. Em Santa Maria, estes impérios são normalmente pequenos telheiros nas traseiras das igrejas reservados para armazenar tudo o que está relacionado com a festa e para cozinhar as chamadas ‘sopas’, distribuídas gratuitamente a quem aparecer e, sobretudo, aos mais pobres. Numa cozinha improvisada, numa das pequenas casinhas que se encontram em frente ao terreno do festival, três senhoras fazem as tradicionais malassadas em dois grandes alguidares. Segundo Maria da Conceição, esta é uma receita que tem passado de geração em geração. «Lembro-me de ver as minhas avós fazerem e comecei a ajudá-las. Era muito pequenina», lembra. As malassadas são uma espécie de farturas que levam farinha, ovos, limão, fermento, manteiga, um bocadinho de sal, leite e açúcar. Depois, são fritas em óleo. «É um petisco, que pode servir de sobremesa. É doce», descreve. «É preciso pôr a mão na massa! Dar murros na massa», brinca, convidando-nos a experimentar. «Estamos a contar fazer à volta de uns 35 quilos. Às vezes, às 23h e tal, temos de voltar para aqui para amassar. Não queremos que falte nada a ninguém», revela. Na sexta-feira e no sábado, é Sérgio Conceição que trata dos jantares. Não é cozinheiro de profissão, mas é apaixonado por cozinha e há 20 anos colabora com o festival. Toda a gente o conhece e quer experimentar as suas iguarias. «Nos últimos anos temos feito borrego, feijoada, caldo de peixe, e caldeirada de atum. Cozinho para os amigos e para este tipo de eventos. Nas primeiras edições havia poucos recursos. Aliás, o festival era mais uma espécie de feira de gastronomia, com um pouco de música. Toda a gente ajudava. Depois o festival cresceu», recorda. Segundo Sérgio Conceição, apesar de haver cada vez mais gente e, por isso, seja necessário fazer cada vez mais comida, não cabe muita gente na cozinha. «Como vê, temos muito pouco espaço. Por isso, as tarefas estão muito bem divididas e somos cerca de sete a oito pessoas a trabalhar nos pratos», sublinha. Vê-se que estamos entre amigos. Apesar de haver muito trabalho, não falta tempo para brincadeiras e uns ‘finos’.
Um projeto de sonho
Voltando ao recinto, num terreno do lado direito, vemos algumas tendas. Apesar do site do festival dizer que não há campismo, todos os anos uma senhora que aqui mora disponibiliza o terreno para as pessoas que queiram pernoitar, pedindo apenas o valor simbólico de cinco euros por dia, para uma ajuda na água e luz. Vimos o Pôr do Sol na zona do Bar do Blues, projeto construído pela Associação depois do festival ter mudado para este terreno (começou por ser feito numa fábrica de peixe mesmo aqui ao lado, depois António Monteiro conseguiu comprar este terreno). Uma casa feita com materiais da própria ilha, na qual o atual diretor da associação dedicou muito tempo e colocou pedra a pedra. As paredes estão preenchidas com fotografias de alguns dos artistas que já passaram por cá. É aqui que almoçam e jantam nos dias em que cá estão. Alguns dos membros dos Escravos da Cadeirinha encontram-se sentados numa das grandes mesas de madeira no interior. Segundo Emanuel Soares, um dos seus fundadores, o nome da associação foi escolhido tendo em conta um facto verídico de que já pouco se fala. «Era frequente, no século XVI e XVII, principalmente as ilhas mais pequenas, serem invadidas por corsários. A diferença entre piratas e corsários é que os corsários trabalham a mando de um governo. Tentavam saquear os navios que vinham do Brasil, com ouros, etc. Como estavam muito tempo no mar, tinham de fazer incursões em terra para abastecer. Nessas incursões levavam sempre alguns cativos, porque era moeda de troca, para escravos, mão de obra nas embarcações», conta. «Em 1617, aconteceu a maior incursão de que se sabe: levaram 222 cativos segundo os registos históricos. Foram levados para a Argélia e, durante uns cinco ou seis anos, a corte portuguesa e espanhola, tentaram resgatá-los. Aqueles que regressaram (e não foram muitos) criaram aqui à volta da ermida dos Anjos a Irmandade de Nossa Senhora dos Anjos. E, durante quase um século, faziam uma romaria. Trajavam-se de escravos, saiam da ermida, ponham ao peito dois elos de corrente e cantavam. Quando criámos a associação para promover e divulgar o lugar dos anjos em 2001, como sabíamos dessa história, decidimos que esse deveria ser o nome», acrescenta. António Monteiro, a quem toda a gente chama de Bragueta, convida-nos para sentar. Vê-se nos seus olhos o orgulho por aquilo que a associação foi capaz de construir. «Está aqui muito amor, muita vontade, muito trabalho. São anos de esforços para chegar até este lugar. Somos a capital do Blues em Portugal e começámos do zero. Somos conhecidos além fronteiras e temos trazido bandas incríveis. Este ano, não será exceção. Contamos com mais gente e prometemos sempre trazer mais qualidade. É um enorme orgulho», admite. «O homem sonha e a obra nasce», frisa.
Lá fora, já escureceu. As pessoas aguardam os concertos debaixo de um enorme céu estrelado. O ambiente é familiar. E o festival promete momentos memoráveis, onde o Blues é o protagonista, sempre com o mar como cenário.