Liberais, ursos e libertários

Belas utopias quando concretizadas transformaram-se em distopias monstruosas

Os sonhos dos idealistas, por mais idílicos ou românticos têm de ser confrontadas com o princípio da realidade. Belas utopias quando concretizadas transformaram-se em distopias monstruosas. A excitação dos reformadores das sociedades não resiste ao princípio da realidade. Regra geral as ideias destes degenerados, como os classificou Cioran, não são exequíveis e vingam-se torturando de vários modos os indivíduos para os formatarem. Conhecemos os resultados de fenómenos como o comunismo e o nazismo e agora temos o experimento do hiperliberalismo económico e dos progressistas, uma amálgama de novos maoistas, jacobinos e estalinistas do século XXI.

Imagine-se um mundo onde a liberdade não tem limites, unicamente regido por regras jurídicas, onde cada um deve viver entregue a si próprio e procurando unicamente o seu interesse próprio e a satisfação dos seus desejos.

Quando queremos antever o que será uma ideologia ou uma crença imposta como modo de vida, devemos perceber que homem e sociedade teremos. Quando queremos também testar uma ideia, devemos pensar nas suas possibilidades mais extremas. As ideias libertárias são um desses casos extremos indissociáveis do liberalismo e também de uma certa esquerda. Algo que podemos definir simplificando do seguinte modo: o ser humano deve ser radicalmente livre ou viver para alcançar esse estado, e toda a interferência ou limite é considerada uma coacção inaceitável.

Uma das frases aparentemente mais idealistas que já li, mas também mais tonta e devastadora, foi proferida por uma libertária de esquerda, Simone Beauvoir: «Que nada nos limite, que nada nos defina, que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância, já que viver é ser livre.».

Qualquer humano dotado de uma inteligência mínima percebe que a liberdade infantil não é livre, porque ser livre implica responsabilidades, deveres e obrigações. Sem limites somos o célebre macaco que não deu certo, a definição que Millor Fernandes dava de ser humano e que é o caminho mais rápido para regressarmos à selva de onde saímos.

O ideário libertário contemporâneo conheceu em determinados períodos, algumas tentativas de realização, os anos sessenta conheceram vários exemplos que pouco se diferenciavam da vida numa seita bizarra, e nenhuma experiencia teve longa duração. A possibilidade de uma vida libertária numa escala que não a de uma pequena área, por exemplo, num país, num Estado ou cidade também não aconteceu. Poderíamos mencionar a Somália recente, mas é uma experiência particular de libertarismo.

No século XXI essa experiência realizou-se na cidade de Grafton em New Hampshire, nos EUA. Matthew Hongoltz-Hetling relatou pormenorizadamente essa experiência no seu livro A Libertarian Walks Into a Bear, considerando que se tratava da “experiência social mais ousada da história americana moderna”.

Temos então uma hipótese de perceber como se concretizam na prática e sem interferência as teses de gente como Ayn Rand, Hoppe, Rothbard e até de Hayek ou Ludwig Mises (estes últimos mais astutos).

A experiência libertária em Grafton durou cerca de dez anos e terminou com uma invasão de ursos selvagens. Essa não foi a causa principal do fim desse experimento, mas o desfecho é elucidativo e serve como uma poderosa metáfora do inevitável fracasso e infantilidade perigosa do libertarismo.

O urso selvagem pode agora servir como um símbolo do que pode corroer completamente uma comunidade sem a existência de regras, normas, limites, coacção, relevância do espírito cooperativo e solidário, valores comunitários e virtudes cívicas. Afastar qualquer ideia de bem comum e interferência estatal que garanta as melhores regras e princípios elementares de coexistência tem consequências. Um libertário, como qualquer liberal considera toda a interferência, como algo exterior, opressivo e desnecessário, que apenas gerará pobreza e discriminação. Uma sociedade liberal, e no seu desenvolvimento final, libertária, é aquela em que os seus cidadãos agem unicamente por conta própria e centrados no seu interesse pessoal, e acreditam que a vida em sociedade não só se deve auto-regular naturalmente, veja-se a ideia de mercado livre, como a vida se tornará mais harmoniosa entre todos e até mais próspera e livre.

A tomada libertária de Grafton não foi um mero acaso, mas antes uma acção planeada. A escolha da cidade e do Estado teve motivações simbólicas. O Estado de New Hampshire tem a divisa: “Viva Livre ou Morra”. Esse Estado é considerado o mais libertário dos EUA, inclusive no presente, onde é muito popular o ideal do menor imposto possível e encontramos um grande interesse pelas criptomoedas, como expressão da menor regulamentação possível.

Grafton tem na sua história episódios significativos de rebelião contra autoridades. No século XVIII a cidade votou pela separação dos recém-constituídos Estados Unidos da América por razões fiscais e muitos dos seus habitantes exerceram o que designaram como a desobediência fiscal, não pagando impostos.

No início do ano 2000 um grupo de libertários decidiu concretizar o seu ideário e lançaram vários apelos nacionais em fóruns. A ideia consistia em mobilizar um bom número de libertários para um só lugar, onde poderiam organizar o seu poder de voto, condicionar decisões e eliminar todas as regras, despesas, impostos e regulamentos na relação entre o Estado e o individuo, e desse modo tornar realidade a experiência política libertária de governo de uma cidade.

A NH Liberty Alliance foi criada em 2003 com a intenção de aumentar as liberdades individuais dos cidadãos de New Hampshire, realizar propostas de leis baseadas nos ideais libertários e vigiar o tipo de legislação produzida. Essa cidade pela sua dimensão permitia que um grupo a dominasse. Foi adquirido um terreno e apelado aos libertários para rumarem à cidade. Esse terreno dispensava assim o dispendioso ónus de adquirir ou arrendar habitações tradicionais e a burocracia associada. Rapidamente o terreno encheu-se com tendas, contentores e cabanas. Um único princípio regia esse território, a “liberdade pessoal”.

Matthew Hongoltz-Hetling traçou o retrato sociológico das pessoas que anuíram ao apelo. Os novos moradores eram na sua maioria homens brancos, solteiros e defensores da posse de armas, um grande número caracterizava-se por mudar facilmente de cidade e ou habitação. Um outro grupo importante tinha pouco dinheiro e referiam que pouco ou nada os matinha em qualquer lugar. A maior parte destes indivíduos não tinham situações familiares ou laborais estáveis e em comum detestavam qualquer ideia de um trabalho e horários fixos.

Em 2004 o que designaram como “Projecto Cidade Livre” e mais tarde “Projecto Estado Livre” estava em condições de avançar. Iriamos conhecer a experiência de autogoverno radical assente unicamente em nos princípios libertários e no mercado livre. O número crescente de indivíduos que chegaram permitiu obter maiorias importantes nas reuniões dos conselhos locais. Houve sempre alguns confrontos com os habitantes tradicionais, mas também alguns desses habitantes aderiram com entusiasmo a esse ideário, aliás o líder libertário era um bombeiro local. Nas etapas seguintes e controlada a assembleia da cidade, começaram a eliminar qualquer vestígio de relações ou influência do poder que não decorresse da iniciativa de cada um e a cada momento. O financiamento público diminuiu para valores residuais e o funcionamento da biblioteca e da escola pública, do corpo de bombeiros, da polícia, os serviços rodoviários públicos foram severamente afectados. Tudo o que era leis estaduais e federais tornaram-se apenas sugestões para que cada agir conforme a sua vontade e necessidade. Não conseguiram, ainda assim, aprovar tudo o que pretendiam, como cortar totalmente com a ideia de educação pública ou eliminar o pagamento de reparação nas estradas, ou declarar a cidade zona franca. O projecto apesar dos conflitos crescentes até entre os próprios libertários prolongou-se até 2016.

 A localidade mudou significativamente, mas nenhuma das mudanças foi para melhor, a não ser para o ego mais delirante de cada libertário. A reciclagem diminuiu brutalmente, os conflitos e reclamações entre vizinhos aumentaram, as despesas legais devido aos litígios entre a cidade e os seus habitantes ultrapassou as verbas disponíveis do município, o número de criminosos sexuais a residir na cidade cresceu exponencialmente assim como a criminalidade. Por exemplo, antes não existiam homicídios na cidade, e começaram a ocorrer, por fim, existia apenas um polícia com os carros-patrulha avariados. As cidades vizinhas de Grafton pagavam impostos que não oneravam em muito os cidadãos e tinham as ruas e estradas pavimentadas e iluminadas o que deixou de acontecer na cidade libertária. Em Grafton a iluminação pública e a colecta de lixo tornou-se residual, a biblioteca pública reduziu o seu horário para apenas 3 horas por dia, pois não havia recursos ou vontade para pagar a mais pessoas. Os habitantes viveram durante algum tempo uma réplica do faroeste no século XXI. A promessa de que o corte de verbas resultaria em menos impostos e mais dinheiro no bolso dos moradores acabou por não ter resultados tangíveis.

A deterioração da vida das pessoas e da cidade foi devastadora e a invasão factual da cidade por ursos selvagens foi uma das consequências. No século XXI uma cidade no Ocidente ser invadida por ursos é algo possível num regime libertário.

Na prática a crença que o mercado tudo resolve e se auto-regula, não funciona se formos sinceros, ou tem donos muito poderosos, ou seja, a tal mão, que diziam invisível ou é uma máquina de destruição, ainda mais imparável, suscitando o que há de mais animalesco nos humanos.

A invasão dos ursos com ataques a humanos aconteceu mesmo, pois cada vez mais pessoas vivam na floresta, cada um a seu modo, não interferindo na vida uns dos outros, ignoravam-se as leis da caça, os regulamentos até sobre alimentação dos animais… Em nome da liberdade, recusaram chamar as autoridades regionais para encontrar soluções para a aproximação e ataques dos animais, tendo cada um tentado a sua solução. Desde fogo-de-artifício, a pimenta na comida, até aqueles que tentarem adoptar ursos. Os ursos adquiriram cada mais ousadia e interesse nos humanos. O acto de obterem alimentação tornou-se tão fácil que deixaram até de hibernar. O lema “viver livre ou morrer” realizou-se com um novo desfecho, “fugir ou morrer”. Os libertários fugiram e foi necessário restabelecer a ordem. Após 8 anos do fim do experimento liberal libertário a cidade já não é atacada por ursos, mas ainda não recuperou do grau de devastação provocada.