As crianças querem-se barulhentas

Uma criança saudável é irrequieta, barulhenta, espontânea, imprevisível e cheia de criatividade e imaginação, que usa para preencher os seus dias e o seu mundo desocupado. 

No cimo de um monte alentejano há um café panorâmico onde as crianças não são bem-vindas. O dono desse espaço, como acontece em tantos outros que vedam ou dificultam o acesso a crianças, não tolera o seu frenesim e considera que este afugentará a clientela.

A poucos quilómetros desse monte, estive a observar um grupo de crianças em grande algazarra que tentava equilibrar-se em cima de uma boia com capacidade para uma ou duas. Todas de idades diferentes, estiveram durante um longo pedaço de tempo absolutamente envolvidas naquele jogo de sobrevivência. Quando conseguiam subir todas era uma ramboia, mas rapidamente o conforto de umas implicava o desconforto de outras e depois de acotovelamentos e gritos de entusiasmo e nervosismo começavam a tentar expulsar-se umas às outras. Quem se conseguia manter na boia vangloriava-se, até ao momento em que era puxado para a água e se esforçava por voltar a embarcar, contra a determinação de quem tinha ocupado o seu lugar. Formavam-se equipas, faziam-se alianças, a boia girava, dobrava-se e era puxada em todas direções, assim como os seus ocupantes, que se tentavam equilibrar entre uma agitação frenética de medida de forças, persistência, habilidade, criatividade e sobretudo de um enorme entusiasmo, que transparecia nos risos e da expressão de cada um, bem como do considerável aumento do nível de decibéis na zona. Os mais desatentos podiam confundir os picos de choro com aflição, mas na verdade não passavam de uma aguçada arma usada pelos mais pequenos, contra a força e habilidade dos mais velhos que, diga-se, apesar da vontade de subirem ao pódio mantinham-se atentos aos movimentos destes para não os magoarem.

Dificilmente algum adulto que estivesse por perto – e não era preciso ser o tal senhor do café – estaria assim tão divertido. Aquele ruído constante e imprevisível, entre risos, gritos e choro, podia tornar-se absolutamente enervante e perturbador, para não dizer insuportável.

Seria o confronto entre duas fases da vida: de um lado o adulto que já esqueceu a euforia arrebatada da infância e do outro a criança despreocupada, ainda longe de imaginar que um dia, sem se aperceber, irá abrir mão da sua espontaneidade para se entregar a um mundo mais enfadonho e pouco imaginativo.

Embora possa ser tentador idealizar como seria fantástico (para os adultos) que as crianças brincassem de forma organizada, silenciosa e cordial, sabemos que essas características estão reservadas para mais tarde. Uma criança saudável é irrequieta, barulhenta, espontânea, imprevisível e cheia de criatividade e imaginação, que usa para preencher os seus dias e o seu mundo desocupado. É através da brincadeira que cresce e evolui, que se desenvolve, que se descobre e que mais tarde se torna um adulto completo e capaz.

Todos nós vivemos nessa boia, por vezes sobrelotada. Todos tentamos encontrar um lugar de equilíbrio e confortável entre os outros ocupantes, cada um da melhor forma que sabe. E é na infância que começamos a testar e a desenvolver a capacidade para o fazer, que descobrimos com os outros as nossas fraquezas e que desenvolvemos as nossas habilidades, a nossa resistência e vocação, de forma audaz e barulhenta. Os gritos que exasperam os mais velhos são uma expressão incontrolável, genuína e audível desses sentimentos e emoções de quem ainda está a crescer. Talvez, em vez de os tentar silenciar, alguns adultos beneficiassem se conseguissem recuperar e conservar um bocadinho dessa espontaneidade sem regras e cheia de vida.

Psicóloga na ClinicaLab Rita de Botton
filipachasqueira@gmail.com