Máximos olímpicos

Nestes Jogos Olímpicos, a portuguesa foi a última a cruzar a meta mas, com toda a justiça, foi saudada como se fosse a vencedora. E foi.

Uma quase-grávida portuguesa participou numa modalidade olímpica e chegou ao fim. Ana Cabecinha, alentejana-algarvia de 40 anos de idade, mãe há 88 dias (de cesariana) apresentou-se nos Jogos Olímpicos para a prova dos 20 km marcha. Esta gigante, após mais de duas décadas anos na elite mundial do atletismo, foi para Paris na exterogestação, ou seja no 4.º trimestre de gravidez, durante o qual a saúde do bebé e a saúde da mãe continuam a merecer especial atenção, para garantir a sua boa evolução e posto que ainda ocorrem mudanças drásticas. Por exemplo, depois do tráfego bidirecional de células durante a gestação, há ainda células fetais que ficam na mãe (microquimerismo fetal), e células maternas no feto (microquimerismo materno).

Aliás, a forma como a atleta se referiu ao seu filho não podia ser mais eloquente sobre este mistério da vida: «Culminar o fim de carreira aqui, com toda a família e com o meu filhote da parte de fora, é melhor do que aquilo com que sonhei». Ou «A cada volta ver o meu bebé na parte de fora dava-me motivação extra para fazer mais uma volta e mais uma volta». A sua expressão ‘da parte de fora’, a necessidade de sublinhar que o Lourenço já saiu de si, revela como a Ana está ainda grávida. Como ainda há um bebé ou partes dele no ‘lado de dentro’, células no seu corpo e muito sonho/futuro na sua cabeça.

A Ana ainda podia estar de licença de maternidade mais dois meses, mas foi participar nos seus quintos jogos, fechando este ciclo da sua vida com chave de ouro. Já era conhecida como ‘o milagre de Pechão’, mas o seu treinador, Paulo Murta, explicou: «A Ana pouco mais treinou do que 10 ou 15 dias. O treino nunca era à hora marcada, era o Lourenço que impunha os ritmos».

E assim foi. Munida dessa força de vontade inquebrantável que só abençoa os heróis, a desportista de alto rendimento cumpriu e fez uma última volta comovente, beijando o seu filho e emocionando os juízes, que tal nunca tinham visto. Nem voltarão a ver tão cedo.

Fiel até ao último dia ao seu Clube Oriental de Pechão (apesar das outras propostas), leal, humilde e perseverante como o desporto também ensina, levou os diplomas em Pequim2008 (em que foi oitava), em Londres2012 e Rio2016 (nos quais foi sexta) e a agora a maior medalha de todas, a de inspirar gerações e gerações de aspirantes ao podium, bem como milhares de mulheres.

Nestes Jogos Olímpicos, a portuguesa foi a última a cruzar a meta mas, com toda a justiça, foi saudada como se fosse a vencedora. E foi. A nossa campeã assumiu-se ainda como porta-estandarte da missão portuguesa em Paris e também esse desígnio não podia ter sido mais certeiro. Ana foi e é um hino vivo às mulheres, ao XY, a todos os desafios que a sua biologia lhes coloca, aos vários obstáculos e preconceitos que se atravessam. No meio de umas olimpíadas eivadas de momentos tão ou mais sujos quanto o imundo Rio Sena, tão pejada de iniquidades e mentiras, o mérito e a luz da Ana fizeram história. Há tantos medalhados infelizmente esquecidos ou apenas lembrados de 4 em 4 anos, que há que celebrar este feito intemporal. Ficamos todos grávidos de orgulho. Muito obrigada.