O mundo é um lugar difícil de interpretar

A nossa política externa teve sempre como ponto essencial a relação privilegiada com a potência marítima do sistema: primeiro a Inglaterra, depois os EUA.

Com a profusão de comentário no espaço público sobre a realidade internacional, é importante situar algumas questões, que não aparecem discutidas nesses comentários, e que são essenciais para que os mesmos sejam esclarecedores e não apenas propaganda (propositada ou inocente por meio de se estar a falar do que não se conhece).

Em primeiro lugar, importa distinguir alguns conceitos que surgem em equívoco e que levam a que algumas pessoas olhem para as questões internacionais como se as estivessem a ver da sua janela, não estão.

‘Relações internacionais’ e ‘Política Externa’ não são a mesma coisa. As relações internacionais são uma ciência (ou área de saber, se o termo ‘ciência’ ferir espíritos mais suscetíveis), que se debruça sobre o estudo do poder e das relações de poder no sistema internacional. A política externa consiste do conjunto de ações e decisões dos estados na sua esfera internacional.

Se as RI visam interpretar a realidade, as diferentes PE visam proteger ou maximizar os diversos interesses nacionais dos estados. Não há ‘bem’ ou ‘mal’ ou ‘certo’ ou ‘errado’ no âmbito das PE, no sentido em que a qualidade da decisão não é relativa à ética, mas apenas ao cumprimento desses objetivos. A qualidade da decisão decorre do quanto a mesma contribui para a realização do interesse nacional.

Se olharmos a Carta das Nações Unidas, documento regulador máximo das relações entre os Estados (e que se julga estar ainda válido), a mesma defende duas dimensões essenciais, demasiadas vezes esquecidas por conveniência política: ‘igualdade soberana’ e ‘não ingerência em assuntos internos’. Isto é, todos os Estados têm direito ao seu interesse nacional, não apenas os nossos aliados, como também os que consideramos nossos adversários. Paralelamente, as questões internas, independentemente do nosso gosto ou vontade, são resolvidas internamente pelos agentes políticos desses estados.

Isto é, quase todo o comentário esquece-se que a interpretação da realidade não pode ter por base um duplo padrão de interpretação ética da ação dos agentes políticos. Pior, esta é normalmente realizada com pendor eurocêntrico (que apenas por pudor não se escreve ‘etnocêntrico’).

Naturalmente que esta prosa tem como objetivo chegar a um lugar concreto: todos os Estados têm o direito (e o dever) de fazer cumprir o seu interesse nacional, mesmo que isso nos pareça contrário ao conjunto de valores que entendemos dever prevalecer na relação entre os mesmos, e ressalvando o mínimo múltiplo comum decorrente do direito internacional humanitário.

‘Trocado por miúdos’, todas as potências agem como potências, e as mesmas, nas suas políticas externas, tentam condicionar a ação dos demais agentes. Não tenhamos ilusões, a ‘ordem internacional liberal’ procurou promover regras constrangedoras da ação de ‘uns’, para benefício de ‘outros’. Os ‘outros’ suportaram essas regras, até se sentirem com capacidade (leia-se ‘poder’) suficiente para questionar as mesmas. Esse é o ‘momento’ que estamos a viver, e por isso sentimos um mundo com tantos focos de fricção e conflito. Todo o pequeno conflito está internacionalizado.

Para Portugal, e voltando à política externa, o objetivo é manter as oportunidades em aberto. A nossa política externa teve sempre como ponto essencial a relação privilegiada com a potência marítima do sistema: primeiro a Inglaterra, depois os EUA.

Mais do que julgar e condenar, o foco deve estar em saber para onde vamos e nós, como pequeno país europeu, vamos para onde soprar o vento. Nove séculos depois, não vamos passar a bolinar.