A Saúde não deixa de ser notícia por insuficiências na resposta assistencial, enquanto vemos disponibilizar diariamente listas de serviços que estão abertos – esta situação não tem par no espaço comunitário em que nos inserimos. O foco tem sido a urgência hospitalar, particularmente a obstétrica, tendo-se verificado já algumas quebras de segurança, felizmente sem consequências graves… Como sempre, o tema entrou na agenda político-mediática e ouvem-se muitos experts (mais políticos-comentadores do que técnicos conhecedores) pronunciarem-se sobre soluções pontuais para a inegável crise da saúde. Sem pretender assacar responsabilidades, o que seria uma perda de tempo, será, contudo, inevitável apontar os governos no passado. Refiro-me ao crónico desinvestimento estrutural no Serviço Nacional de Saúde (SNS), ao negligenciar na previsão das necessidades de profissionais de saúde e nas condições para a sua atractividade no sistema, tudo parte duma ausência de estratégia para a Saúde no país. Infelizmente, não será a Saúde caso único nesta nossa ancestral incapacidade de desenvolver uma visão de longo prazo e de ter uma estratégia eficaz para muitos dos sectores no país…No caso do SNS o desinvestimento não foi só económico, foi de planeamento e de gestão e faz-me lembrar a triste história do ‘cavalo do escocês’, que foi sendo por ele alimentado cada vez com maior parcimónia para, quando estava já a comer muito pouco…morreu! Mais paralisante do que esse desinvestimento terá sido o viés ideológico que tem dividido a saúde dos portugueses em pública e privada, como se essa fosse a questão fundamental, ou a via para a solução do problema. Direi que há dois fundamentalismos sobre a saúde em Portugal: o primeiro é que é gratuita, e o segundo é que tem de ser o estado a prestá-la. Se a primeira ideia é falsa e potencialmente geradora de expectativas irrealistas a que o estado não corresponde, a segunda está bem à prova na clamorosa falência actual do SNS, qual ‘cavalo do escocês’. O papel primordial do estado deveria, ao invés de procurar obstinadamente assegurar a prestação de cuidados, o de prover à saúde, regulando e contratando a actividade e assegurando que não faltassem aos cidadãos cuidados assistenciais: no acesso geográfico em tempo útil e na acessibilidade financeira: sem exclusões e com total equidade. No quadro presente, persistir em soluções incrementais e de sector só fará com que a crise se eternize na repetição, ano após ano independentemente dos governos. A solução, se não quisermos reinventar a roda, passará por uma reforma verdadeira do sistema de saúde que, tendo o SNS como eixo central, passe a integrar em rede de prestação o sector público, o social e o privado; competindo entre si e com larga autonomia de funcionamento, permitindo acessos em livre escolha, orientados por resultados e pela satisfação gerada. O financiamento pelos impostos, que tem vindo sempre a aumentar, mas que cobre ainda pouco mais que 60% da despesa total da saúde (…), teria de ser complementado por seguros reduzindo o excessivo dispêndio individual directo dos cidadãos, entre nós de 30 %, o mais elevado da OCDE (OCDE 2023). Estes modelos, sempre com forte regulação estatal, já vigoram satisfatoriamente noutros países europeus, exemplo: a Holanda. Uma solução reformista só seria possível com a realização dum pacto de convergência unindo, enfim, as forças políticas mais relevantes: patrioticamente, a bem do país e dos portugueses!
O que dizer da prestação do executivo atual? É inegável que o executivo actual se deparou com uma situação de profunda crise, face às elevadas expectativas de todos nós, tanto pelo estado calamitoso da saúde como pelo desejo da sua rápida melhoria… Mas 100 dias são poucos para implementar políticas de recuperação, quanto mais para levar a cabo reformas de fundo, para além da bem-sucedida actuação na oncologia cirúrgica, talvez se pudesse nesta resposta de emergência à saúde ter recorrido, mais cedo e com maior amplitude, à prometida complementaridade social e privada. Tal teria evitado incómodos e riscos aos doentes e preservado melhor a imagem do executivo, em particular num momento em que, trabalhando com competência nas soluções possíveis, vai ouvindo despudoradas acusações por tantos que, fazendo parte do problema, não lhe perdoam agora o tardar das soluções que eles mesmos falharam. Infelizmente não há soluções mágicas e, por melhor que seja o desempenho das equipas ministeriais, e houve algumas competentes, é este modelo de SNS, hoje desajustado nos meios, que está em crise e que grita agora por reforma.
Não vale a pena clamar mais sobre termos o melhor SNS do mundo, precisamos mesmo é que funcione. Não haverá problemas iguais, mas por alguma razão o SNS inglês (NHS), no qual o nosso tanto se inspirou, é, apesar de muitas modificações sofridas, hoje na Europa o que mais insatisfação gera e piores notícias produz. Trata-se sim dum problema de modelo e do seu desajustamento no tempo, pois como disse Einstein – «não podemos resolver os problemas sob o mesmo pensamento com que foram criados». Em Portugal, mais do que pretensas reformas e medidas incrementais avulsas, precisamos hoje dum Sistema de Saúde modernizado, regulado pelo estado, mas incorporando toda a capacidade instalada e permitindo aos cidadãos escolhas de qualidade. Isto enquanto preserva os princípios fundacionais do SNS de acesso universal, escolha livre, equidade, empatia e solidariedade – com sustentabilidade sistémica, económica e social.
É possível, é necessário e tem de ser tentado, quanto antes melhor!
Médico e professor universitário