De Moimenta da Beira, vim penar a delegado em Felgueiras. Logo à chegada, me indicaram o restaurante dos ‘Senhores Magistrados’, encostado às traseiras do tribunal. A um canto, bem reservado e discreto, numa mesa, um dístico: ‘Mesa do Sr. Dr. DELEGADO’. Almoçava quotidianamente ali. Pagava no dia em que a ordem de pagamento, vinda do Ministério, chegava às Finanças locais. Quando o dinheiro resistia a outros gastos, úteis e mais das vezes inúteis, também jantava.
Do mesmo passo, me informaram sobre a Câmara Municipal. A quem pagava a renda de uma enorme e bem apetrechada moradia ao sair da vila. Acrescentaram que era bom cuidar do Sr. presidente da Câmara. ‘Boas relações, Sr. Dr. Delegado’ (sic). Dele teria tudo que à Câmara competia. E não competia. Um advogado ilustre em Felgueiras, Lixa e arredores.
Empreendedor, ornamentara Felgueiras com desvelos rodoviários, era publicamente tido por ‘Zé das placas’. Por sua ordem e gerência do município, o centro da vila e acessos encantavam com o ornamento das placas de proibido, sentido único ou estacionamento autorizado/proibido.
A grande diversão por lá era, já se sabe, o jogo proibido. No tempo tudo era proibido. O não autorizado expressamente, era proibido. Exatamente o contrário da liberdade. O jogo era num primeiro andar, perto da casa do Pão de LÓ de Felgueiras. A ‘lerpa’, a jogatina mais procurada e preferida. A convite, fui às noitadas da ‘lerpa’ algumas vezes. Perdi sempre. Causticava ou castigava na compensação do jantar.
E era assim. Da moradia para o tribunal. Daqui para a moradia. Uns cafés depois de almoço com advogados. Verberado por isso no tribunal. Magistrado é magistrado, não dá confiança a advogados. Nas tardes mais folgadas, lanchava um café na Lixa com uma professora de ensino primário, amiga de longa data. Aos fins de semana, dava-lhe boleia para o Porto, onde residia.
Assim ‘conheci’ As Três Marias. A sua obra literária, Novas Cartas Portuguesas. Obra que tombou e feriu duro no simulacro de coração da ditadura de antes de Abril. Novel nas ideias. Na coragem. Na defesa da Liberdade, Igualdade e Dignidade de todo o ser humano. Defesa intransigente dos direitos das mulheres. Tive acesso a essa obra. Guardada/escondida na cave da livraria, acima umas centenas de metros do tribunal. Aí a adquiri, na confiança do livreiro . Li-a no gabinete de trabalho. Um quase ‘sacrário’ protegido pela autoridade que era eu.
De saco pronto para o Porto, a amiga já no carro, surge o oficial de diligências, com ofício da R. António Maria Cardoso, em Lisboa. PIDE. Petrificado de de terror. Fiquei branco, amarelo, a amiga a perguntar o que tens? Mandavam-me ir à livraria apreender todos os exemplares das Três Marias. Respirei. Não respirei. Tinha o livro no gabinete. Fui escondê-lo no armário entre os processos. Telefonei à livraria. Estava já fechada. Respirei. Só segunda.
O fim de semana foi um tormento, um nó na garganta a apertar-me. Nada por ali passava. Antes das oito de segunda, já estava no tribunal. A livraria abria às nove. Tudo me pesava. A cabeça. As pernas. As mãos. Entrei. Perguntei ao livreiro pelas Novas Cartas. Não tinha. Nunca tivera. Viria pelas onze mais o funcionário para a busca. E fui. O funcionário levava o impresso para busca. Outro para o auto. Na companhia do livreiro, procuramos nas estantes de cima e da cave. Nada.
A meu mando o funcionário redigiu o auto. Assinei. Mandei tudo para a PIDE.
Silêncio do lado de lá. Semanas depois, contou-me o livreiro, a PIDE fora lá em busca das MARIAS. Levei tudo para a LIXA a esconder num escritório de advogado, disse ele.
Depois, muito depois, recebi pelo correio uma encomenda. Já trabalhava em Vila do Conde. Trazia um livro. As Novas Cartas Portuguesas.