Derreter de prazer

A partir do século XVIII, os gelados passaram a ser servidos em cafés, não tendo Lisboa escapado à tendência

É pró menino e prá menina, prós papás e vovós…. é pra todos. Com pauzinho, em taça, cone, ou até em sandwich, seja semifreddo, parfait, kulfi, dondurma ou qualquer outro, quem não se pela por um bom gelado, gelato, helado, glace, ice cream ou Eiscreme? Simples, com frutas, natas batidas ou affogato em café, é uma delícia de verão e de inverno.

Tecnicamente, uma espuma é tipicamente constituída por cerca de 30% de gelo, 5% de gordura, 50% de ar e 15% de solução açucarada (matriz) por volume. Contém, assim, os três estados da matéria: sólido (os cristais de gelo e coágulos de gordura), gasoso (as pequenas bolhas de ar) e líquido (a matriz).

Ao contrário do que rezam as lendas, não foi Marco Polo que, no século XIII, trouxe a receita da China e a introduziu na Península Itálica, nem sequer a sua divulgação em França se ficou a dever aos chefs de Catarina de Médici, quando esta, em 1533, casou com o futuro Henrique II. Na verdade, os gelados modernos têm pouco mais de 300 anos e terão nascido da combinação da tradição culinária europeia dos cremes à base de leite e gemas com a dos sorbets, que na Pérsia já eram produzidos no século VI a.C. Feitos de sumo ou puré de frutas e xarope de açúcar, os sorbets, contrariamente aos gelados, não contêm laticínios nem ovos. O termo francês sorbet deriva do italiano sorbetto, que por sua vez proveio do persa sharbat.

A congelação é, obviamente, crucial na preparação de gelados. Os árabes já sabiam desde há muito que a adição de certos sais à água produz uma mistura acentuadamente mais fria – por exemplo, 5 partes de cloreto de amónio e outro tanto de nitrato de potássio em 16 partes de água a 10oC, baixam a temperatura para -12oC – e, por isso, contaram-se entre os pioneiros das sobremesas geladas. Na Europa, porém, a arte da congelação só se desenvolveu a partir dos inícios do século XVII, para o que contribuiu Giambatistta dela Porta, um polímata experimentalista e divulgador de ciência napolitano que verificou que a adição de nitrato de potássio à neve causa um arrefecimento suficiente para congelar uma garrafa de água. Em 1589, incluiu essa descoberta na segunda edição do seu célebre Magia Naturalis. De facto, na presença de sais, a água congela a uma temperatura inferior a 0oC. (Quando neva, espalha-se cloreto de sódio nas estradas para que o gelo funda; serão necessárias temperaturas mais baixas para que volte a congelar.)

A receita de gelados europeia mais antiga que se conhece surge num manuscrito de 1665, da autoria de uma nobre inglesa, Ann Fanshawe, cujo marido mediou o casamento de Carlos II com Catarina de Bragança e foi embaixador em Portugal. Há registos de 1671 que indicam que o monarca inglês consumia ice cream. A moda dos gelados fez disparar a construção de reservatórios de gelo. Recolhido em lagos e rios congelados, ou obtido a partir de neve compactada, era mantido nesses depósitos até ao verão. A partir do século XVIII, os gelados passaram a ser servidos em cafés, não tendo Lisboa escapado à tendência. Para o fabrico da ‘neve’, nome que por cá era dado aos gelados, o gelo provinha do Coentral, na Serra da Lousã, e da Real Fábrica do Gelo. Construída em 1741, na Serra do Montejunto (Cadaval), esta era dotada de tanques de pedra nos quais a água gelava durante a noite.

O método de preparação da guloseima consistia em colocar a taça com a mistura dos ingredientes dentro de uma barrica cheia de gelo e sal e, com o auxílio de um raspador, remover constantemente os cristais de gelo formados junto às paredes. Foi assim até 1843, ano em que a norte-americana Nancy Johnson patenteou a primeira batedeira de gelados com manivela. Mais fáceis de fazer, ficavam também mais cremosos. A inglesa Agnes Marshall, por sua vez, inventou em 1888 o cone para gelado, que, no entanto, só se popularizou em 1904, com a Exposição Universal de St. Louis. 

1946 foi o ano de maior consumo per capita de gelados nos EUA, já por si um campeão nesta matéria: 10,5 kg. O pós-guerra trouxe a refrigeração doméstica, mas também, a nível industrial, um número crescente de agentes emulsionantes e estabilizadores, gerando uma hierarquia de qualidade. Se no topo desta está o gelado tradicional, na base encontra-se um produto inferior, à base de ingredientes baratos, como leite em pó, e, claro, muito mais ar incorporado, requerendo, por isso, vários aditivos.

Para os gelados, como para o amor, parece que soa melhor o italiano, como Giolitti ou Santini. Emanha não soa, de facto, tão bem, mas sabe melhor, ou pelo menos guardo essa recordação da adolescência.

Agora vou ali comer um gelado.