Tarvastu é uma cidade na Estónia que viu nascer Martin Klein, um dos melhores na luta greco-romana de todos os tempos. Ninguém percebeu muito bem por que é que, em 1912, nos Jogos Olímpicos de Estocolmo, Martin, que já tinha uma carreira firmada, resolveu renegar a pátria e surgir integrado na delegação da Rússia czarista. A verdade é que, com essa opção, acicatou muitos dos adversários que, pertencendo a países fronteiriços da Rússia encontraram em si próprios mais vontade ainda de lhe encostar as espáduas ao chão. Ora um deles foi precisamente Alfred Johan Asikainen, conhecido por Alpo, natural de Viipuri, uma cidade que não por acaso pertenceu à Finlândia e hoje faz parte do território russo, junto ao canal de Saimaa, no Golfo da Finlândia, a pouco mais de cem quilómetros de São Petersburgo. Ninguém emViipuri gostava de russos e pelos vistos com razão, não tivessem eles tomado a cidade na primeira oportunidade que lhes surgiu. Mas, em 1912, as coisas ainda estavam apenas na corda bamba quando Klein e Asikeinen se defrontaram numa das meias-finais da modalidade que era a da sua paixão. Toda a gente que gostava de luta greco-romana se entusiasmou com o combate para homens de 75 kg. Estariam frente a frente dois candidatos à medalha de ouro e o confronto prometia. Prometia mesmo muito, mas cumpriu muitos mais do que alguém pudesse sequer ter imaginado.
Acrescente-se que o Império Russo tinha assumido desde 1809 a Finlândia como uma das suas províncias e só a forte simpatia do Comité Olímpico Internacional pela luta finlandesa pela independência pôde permitir que surgisse uma delegação à parte sob o título de Grão-Ducado da Finlândia. Os russos reclamaram como puderam mas viram as suas pretensões darem com os burrinhos na água, sobretudo porque os organizadores suecos também ficaram do lado dos seus vizinhos. E assim sendo, como que as partes se viraram ao contrário: Alpo defendeu as cores da Finlândia, fugindo do torniquete russo, e Martin largou as cores da Estónia para se apresentar sob a bandeira russa.
Foi numa tarde de calor abrasador, a mesma canícula que seria fatal para o português Francisco Lázaro na maratona, que Klein e Asikeinen começaram naquele esforço muitas vezes irritante de se agarrarem um ao outro procurando desequilibrar o opositor. Pareciam dois rochedos. Nem sequer abanaram durante os primeiros quinze minutos. Quinze minutos?!, perguntará o leitor e com toda a razão. Sim, ainda não havia um período de tempo a balizar os combates e estes prolongavam-se até que um dos lutadores imobilizasse o adversário. O público fixava os olhos naquela massa de músculos e tendões que pareciam ser um homem só embora nele batessem dois corações. E com isto decorreu uma hora sem que nenhum baixasse a guarda. A pouco e pouco, conforme os minutos passavam, o combate começava a tornar-se um problema. Asikeinen era visto como melhor lutador do que Klein – até porque fora campeão do mundo no ano anterior –, mas não conseguia demonstrar a tal propalada superioridade. Ao fim de duas horas e meia de suor os espetadores começaram a bocejar. Convenhamos que dois matulões num esfrega-esfrega contínuo não era assim tão interessante se nenhum deles fosse ao chão. Afinal era esse o objetivo da modalidade, ou não era? Numa teimosia bovina, resfolegavam ambos num esforço baldado. E foram resfolegando por aí fora até à exaustão. O combate entre Martin e Alfred ficou para a história dos Jogos Olímpicos conhecido como um jornalista britânico no local o classificou: «The Match That Wouldn’t End». Mas acabou. Ao fim de onze horas e quarenta minutos absolutamente terríveis e, aceitemos, enfastiantes. O bronze ficava para Asikeinen e Klein iria decidir contra o sueco Claes Johnson qual levaria para casa o ouro. Pois… Mas ninguém aguenta onze horas e quarenta minutos de combate sem sair deles um tanto amachucado. O rapaz nascido naEstónia, que somava à época 28 anos, viu-se e desejou-se para dormir nessa noite tal as dores que o exauriram por completo. A vitória sobre Alpo acabou por ser digna de Pirro, o rei do Epiro e da Macedónia, que depois da Batalha de Ásculo, travada em 279 a.C. contra os romanos, suspirou: «Outra vitória como esta e estamos acabados», tal fora a dimensão da destruição dos seus exércitos. Absolutamente de rastos, Martin Klein não compareceu na final e entregou a medalha de ouro de mão beijada ao seu adversário sueco. Já Asikeinen regressou a casa como um herói dando razão ao que Brecht escreveria uns anos depois: «Nem todos os que regressam a casa são vencedores mas não há vencedor que não regresse a casa».