Vício.“Aquilo manipula-nos e nós não nos importamos”

Instalamos as aplicações, fazemos scroll, encontramos coisas que não sabíamos que existiam, que não precisamos, mas que acabamos por adquirir. São cada vez mais as pessoas que admitem estar viciadas nas compras online. Mas porquê?

Somos cada vez mais bombardeados com publicidades de sites/aplicações que nos dizem aquilo que precisamos e aquilo que não precisamos, mas que muitas vezes acabamos por adquirir. O algoritmo é inteligente, os valores são baixos, dando-nos a impressão que estamos a comprar “pechinchas”. No entanto, não é difícil que o valor total do carrinho nos surpreenda, depois de passarmos horas a escolher artigos. E se há pessoas que compram coisas esporadicamente, há quem já não troque este método pelas lojas físicas e não consiga ficar um dia sem mandar vir alguma coisa. Horas a fazer scroll no telemóvel. Noites em branco em busca dos “melhores produtos”. Compras impulsivas por não termos nada para fazer. 

Um algoritmo fantástico “Aquilo manipula-se e nós não nos importamos”, afirma Luís Pedro Nunes, jornalista, comentador e escritor. Foi a sua namorada que lhe deu a conhecer a Temu. “De repente começou-me a aparecer em casa com coisas estranhas. ‘Toma lá este suporte de telemóvel para o carro que custou três euros’, disse-me. ‘Mas isso é o quê? Não deve prestar para nada’, pensei. Mas afinal durou seis meses. Continuou a aparecer com coisas e eu quis perceber o que era. Instalei a Temu e percebi que não é a mesma coisa que o AliExpress (que já conhecia). O algoritmo da Temu tem uma capacidade de nos dar a conhecer coisas que nós não imaginamos que existem e que queremos desesperadamente”, revela. “Depois é a gamificação. Estás sempre a ganhar vales. Aquilo torna-se uma experiência quase de jogo. Um vício. Além disso, eles criaram uma metodologia que os produtos, em princípio, têm qualidade. Dizem-nos quantos produtos daqueles é que já foram vendidos”, explica Luís Pedro Nunes. “Tens três suportes de telemóvel idênticos, mas há um que vendeu 20 mil unidades, outro só vendeu 50. Por isso, acreditas que o outro, se vendeu tanto, tem qualidade”, continua. De acordo com o jornalista, é um negócio “muito estranho e bizarro”. “Mesmo as pessoas que tentam devolver material, não conseguem. Compram, arrependem-se, querem devolver, mas eles não querem. Dizem às pessoas para ficarem com as coisas”, acrescenta. “Mas eu queria descobrir como é que estas lojas funcionam. A Temu e a Shein têm um Boeing 747 todos os dias, para mandar porcaria para os EUA. De tal maneira que, quando agora houve a crise do mar vermelho, pensaram em pedir mais transporte aéreo para evitar passar algumas mercadorias por cargueiros, mas a Temu e a Shein, têm o transporte aéreo de carga todo ocupado! Obrigam os fornecedores chineses, muitas vezes, a colocarem lá matéria abaixo do preço de custo. Parece uma coisa meio misteriosa”, partilha o comentador do programa da SIC Radical, Irritações, onde falou pela primeira vez sobre este seu vício. “Há quem diga que aquilo é apenas uma coisa chinesa que anda a roubar os dados das pessoas dos EUA e da Europa para vendê-los ao Governo chinês. São teorias. A verdade é que as pessoas não resistem àquilo”, brinca. “Todas as compras têm um nível de custo cuja perda não é suficientemente irritante caso seja um engano. Custa cinco euros, se aquilo não prestar, também não faz mal.  Vês outra coisa a sete euros – um afiador de facas, por exemplo –, se não prestar, também não faz mal”, conta. Segundo Luís Pedro Nunes há ainda outra coisa extraordinária nestas plataformas: “Compres o que comprares, mesmo que seja de várias distribuidoras, eles juntam tudo num pacote e é entregue pelo teu carteiro. É um descanso. Não há tipos que andam em carrinhas que aparecem em dias diferentes, por distribuidoras diferentes”, explica. “Aparece tudo certinho, num pacotinho cor de laranja, tudo bem acomodadinho, oito dias depois!”, frisa. “Desde coisas para cortar os pelos do nariz, a caixas de sobrevivência no mato (comprei logo); a caixas de ferramentas com todas as chaves possíveis e imagináveis (não sei mudar uma ficha elétrica, mas também comprei); mandei vir uma lanterna fantástica que me ajuda a descobrir tudo em casa quando ando à procura de qualquer coisa; uns tapa olhos para não levar com a luz logo de manhã.  Nenhuma dessas coisas me custou mais de 20 euros”, acrescenta. Chegou a um ponto, que a sua mulher teve de lhe “bloquear” a plataforma. “Tenho as aplicações todas com controlo parental. Andei à procura de uma aplicação para bloquear as apps, mas não existe!”, brinca. “Queria mesmo que houvesse. Que permitisse bloquear apps de compras e de comida, porque chega ali a uma hora (entre as 23h30 e as 00h30) em que fico num estado em que o consciente está a dormir, mas o inconsciente e subconsciente ficam acordados. É nessa altura que mando vir porcarias do UberEats e da Temu. É uma chatice. Tenho de ter as apps bloqueadas, se não de manhã acordo e mandei vir montes de coisas”, admite.

Um vício com riscos

Carla Martins descobriu a Shein, a Temu e a Wook há dois anos. “É mais cómodo, não tenho que me deslocar, encontro coisas mais em conta, há uma grande variedade de produtos e não tenho de andar de loja em loja”, explica ao i. Compra sobretudo roupa e sapatos. Sempre gostou de fazer compras e, segundo a mesma, teve a sorte de encontrar um marido que a acompanha. “Sempre gostámos de percorrer os outlets e não deixámos de fazê-lo, mas online é tudo mais fácil”, conta. Nunca pensou que isso se tornaria um vício. “Atualmente sinto que sim. Em todos os bocadinhos livres que tenho no trabalho, para além dos jogos, gosto de pesquisar as novidades que os sites nos estão sempre a notificar. Normalmente uma vez por mês, vou juntando o que gosto no carrinho e depois faço a compra”, revela. Carla chega a ter 90 produtos no carrinho “à espera de serem comprados”. “Os sites online têm preços tão bons que, muitas vezes, fazem com que compre por isso e não porque realmente preciso”, admite. “É mesmo viciante”, sublinha. Até hoje, comprou um total de 98 peças, que lhe custaram cerca de 700 euros. “É uma luta para me controlar. Há coisas muito giras e engraçadas que não se encontram nas lojas físicas”, acrescenta. Interrogada sobre se alguma compra já lhe correu mal, Carla Martins lembra a vez que comprou três vezes a mesma peça. “Cliquei no item três vezes e não me apercebi, só quando efetivei a compra é que vi”, conta. Apesar de adorar estas apps, reconhece os perigos existentes. “Temos que ter muita atenção aos comentários antes de comprar. Corro o risco de não conseguir ver os tecidos, engano-me nos tamanhos… Mas o pior risco é, sem dúvida alguma, sermos burlados. Nunca compro diretamente com o meu cartão. Crio sempre um cartão virtual e dou preferência aos que têm o método de entidade e referência”, alerta.

Sofia Freitas, de Santa Maria, Açores, faz compras online desde 2020. “Dado que vivo numa ilha – que é limitada a nível de variedade de produtos – uso as compras online como método alternativo de forma a satisfazer as minhas necessidades”, explica ao i. Veste o tamanho plus size e, neste momento, pesquisa sobretudo roupas que se enquadrem no seu estilo e personalidade. “Na ilha não encontro o meu estilo e tamanho”, lamenta. Além da roupa, gosta de mandar vir acessórios para a sala, quartos e cozinha. Usa as aplicações como a Temu, Shein, mas também Wells e Decathlon. Sofia admite que se sente viciada. “Atualmente faço no mínimo uma encomenda por mês num destes sites, no valor de cerca de 45 euros. Sempre que posso, mando vir algo”, revela. Não sabe quanto dinheiro já gastou até hoje em todas essas apps, mas desde que aderiu, por exemplo, à Temu – em março deste ano –,  já fez sete encomendas, no total de 34 artigos. Mas nem sempre as coisas correm bem. “Já comprei um artigo de Natal na Shein que não dizia o tamanho real e chegou com 15cm… Pelo preço aparentava ser algo maior. Também mandei vir uma peça de roupa da Patpat (loja de crianças) que supostamente era branca e quando chegou era de plástico (impermeável) refletor!”, desabafa. Para Sofia Freitas, o maior perigo neste método de compras é o extravio das encomendas. “Muitas das apps, atualmente, já não nos devolvem o dinheiro diretamente. Em caso de extravio ou descontentamento, colocam o valor em crédito, obrigando-nos a comprar lá, mesmo que não queiramos”, alerta.

Anticonsumismo

Mas se há quem se renda a este tipo de aplicações, por outro lado, há quem não as compreenda e até as condene. “Eu sou um anticonsumista assumido! Até li há pouco tempo uma entrevista da revista brasileira VEJA com o cientista e escritor Vaclav Smil que diz que a descarbonização global é uma meta irrealista e que para salvar o planeta a melhor solução e mais impopular é consumir menos. As pessoas não gostam de ouvir isto, mas é a verdade”, exalta Bernardo Reino, mais conhecido por Gigi, ao telefone com o i. “Desde quando é que para irmos para a praia precisamos de mais de que um biquíni? Já assisti à moda das havaianas, agora são as birkenstock… É que umas são originais e as outras são falsificações chinesas! Hoje em dia, toda a gente anda preocupada com o ambiente, mas a quantidade é que faz o gasto”, alerta. “E tenho outra coisa que me irrita ainda mais! No outro dia tive uma tomada avariada na praia e o meu eletricista disse-me: ‘Já foi descontinuado’. É uma nova palavra… Avaria-nos uma máquina de lavar e temos de comprar outra, porque não há peças… ‘Está descontinuado!’”, repete. “Eu uso sempre as mesmas roupas! Tenho os mesmos polos há não sei quantos anos! Enerva-me o consumismo desenfreado”, sublinha. Porém, admite, também já teve os seus momentos. “Nas minhas noites boémias, chegava a casa e via aqueles programas de televisão que anunciavam frigideiras. Várias vezes comprei coisas que não precisava para nada. Aconteceu três ou quatro vezes. Comprei frigideiras, aparelhos para fazer ginástica. Acordava de manhã e arrependia-me, claro!”, revela. “Um horror”, sublinha, acrescentando que também existem alguns episódios cómicos no meio de tudo isto. “Tive uma amiga que viu um casaco anunciado na internet, lindo, de pele. Comprou o casaco por 600 euros e chegou-lhe um porta-chaves com um pequeno casaquinho de pele pendurado”, revela ainda.

Um vício perigoso

Segundo a psicóloga Catarina Lucas, o aumento crescente do mercado online faz com que seja mais difícil ainda mudar este comportamento compulsivo de compras online, chamado oniomania (ver pág. 20 e 21). “Há plataformas que permitem a aquisição rápida e barata de todo o tipo de itens. A variedade de itens, os preços baixos e constantes promoções, os cupões, prémios e outros incentivos são fatores de grande incentivo. Além disso, são plataformas sempre disponíveis e de fácil acesso através de uma app, tornando-as mais aditivas”, falando precisamente de plataformas como a Temu, Shein, Amazon, etc. A especialista revela ainda que algumas alturas do dia podem deixar a pessoa mais vulnerável e predisposta a comprar compulsivamente, especialmente em plataformas de produtos a baixo custo. “Esses momentos geralmente estão relacionados ao estado emocional que as pessoas têm em diferentes fases do dia. Antes de dormir é um momento propenso, pois as pessoas tendem a usar os dispositivos eletrónicos nessa altura e o cansaço mental do final do dia reduz o autocontrole e a capacidade de decidir, tornando mais fácil ceder a impulsos de compra”, revela. “O final de um dia de stress também é potenciador, já que as compras são usadas como mecanismo de regulação emocional. Momentos de solidão, como estar sozinho em casa ou em situações em que não há muito o que fazer, também podem aumentar a vulnerabilidade às compras”, acrescenta. Para evitar cair no impulso de comprar nesses momentos, segundo Catarina Lucas, “é útil criar limites no uso dos dispositivos eletrónicos, especialmente antes de dormir, e estar ciente dos gatilhos emocionais que podem levar a essas compras”. “Remover as apps de compras dos dispositivos móveis também pode ajudar”, remata.

Muitas reclamações

De acordo com a DECO, são cada vez mais as reclamações sobre as plataformas de venda de produtos normais, sobretudo sobre a Temu. “Temos recebido muitas reclamações sobre compras online, quer seja em lojas digitais, quer em marketplaces”, revela ao i, acrescentando que lamentavelmente, no presente, não têm a possibilidade técnica de indicar o número de queixas sobre o comércio em marketplaces, pois encontram-se agrupadas na categoria comércio eletrónico. “Apenas podemos afirmar que existem reclamações”, afirma. “Relembramos que a Temu, por exemplo, que tem mais de 75 milhões de utilizadores mensais na UE, não fornece, na maioria dos casos, informações cruciais aos consumidores sobre o vendedor dos produtos e, portanto, não consegue assegurar se o produto cumpre os requisitos de segurança dos produtos dentro da UE”, exemplifica a Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor.  “Esta plataforma de compras online também fornece informações inadequadas sobre os seus sistemas de recomendação e como os diferentes critérios que utilizam levam à proposta de determinados produtos”, continua. Além disso, acrescenta, a Temu “está repleta de técnicas de manipulação para, por exemplo, levar os consumidores a gastar mais do que inicialmente desejariam ou para complicar o processo de encerramento da sua conta”.

Este ano, em maio, a  DECO e mais 16 associações de consumidores que integram o BEUC – Federação Europeia de Associações de Consumidores -, apresentaram queixa contra a plataforma e aos respetivos coordenadores dos serviços digitais nacionais. “O que motivou a nossa queixa, bem como as das restantes organizações de consumidores, é o facto de, no nosso entender, esta plataforma não estar a cumprir várias das suas obrigações legais, estabelecidas no Regulamento da UE 2022/2065 (Regulamento Serviços Digitais – “DSA”), não garantindo assim aos seus utilizadores um ambiente online seguro, previsível e confiável conforme exige a lei”, adiante. “Entre outras coisas, entendemos que os consumidores desta plataforma estão a ser vítimas de técnicas de manipulação, como a utilização de padrões obscuros, falta de transparência sobre a forma como recomenda produtos aos utilizadores, ou o facto da TEMU não garantir a rastreabilidade dos comerciantes que operam na sua plataforma”, reforça. A ANACOM, na qualidade de coordenador dos serviços digitais nacional, avaliou positivamente a reclamação da DECO e, de acordo com o estabelecido no próprio Regulamento, transmitiu-a à Coimisiún na Meán, coordenador dos serviços digitais de estabelecimento da Irlanda, onde se encontra estabelecida a TEMU, tendo esta entidade considerada válida a nossa reclamação, pelo que a mesma seguirá agora os trâmites previstos na lei.