Não são raras as vezes em que ouvimos dizer – ou dizemos mesmo – que alguém é viciado em compras. Na saga de livros Louca por Compras, de Sophie Kinsella, que foi adaptada para o cinema, Rebecca Bloomwood está cheia de dívidas e foge ao seu gerente de conta. Mas a oniomania, para além de ser reconhecida como um vício, constitui um distúrbio psicológico caracterizado pela compulsão de comprar, resultando em problemas financeiros, emocionais e sociais. Este distúrbio tem sido objeto de pesquisa em diversas áreas, incluindo psicologia, psiquiatria e economia comportamental.
Graça Vilar, psiquiatra e diretora de serviços da Direção de Serviços de Planeamento e Intervenção do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), começa por notar, em declarações ao i, que “nos momentos atuais, com a globalização e com a evolução das tecnologias, as sociedades tendem a promover uma maior uniformização no comportamento humano. Assim, múltiplos fatores culturais, sociais, psicológicos podem influenciar os comportamentos das pessoas, englobando uma diversidade de perfis de personalidade”.
“Contudo, na situações em que as pessoas desenvolvem um comportamento problemático, persistente e recorrente em relação a concretizar compras online com implicações sérias nas diversas dimensões existenciais (afetiva/cognitiva, familiar, académica/profissional, financeira) poderemos constar uma diversidade de traços da personalidade”, explica a profissional de saúde, dando o exemplo da “impulsividade” e das “dificuldades para planear antecipadamente”.
No entanto, menciona igualmente a questão da “autoimagem ou sentimento de si próprio instáveis, alterações e superficialidade na expressão emocional”. Além destes fatores, pode igualmente estar presente o “sentimento de autoimportância e maior reconhecimento por parte dos outros pelos bens que adquirem, manifestando uma necessidade de admiração excessiva”.
De facto, as características enunciadas por Graça Vilar vão ao encontro da evidência científica. Por exemplo, em Estimated Prevalence of Compulsive Buying Behavior in the United States, publicado em 2006 no American Journal of Psychiatry, os autores estudaram a prevalência do comportamento de compra compulsiva nos EUA, tendo entendido que cerca de 5,8% dos adultos apresentam sintomas consistentes com a oniomania. O estudo também identificou que o distúrbio é mais comum entre mulheres e em indivíduos com níveis mais elevados de rendimento e educação e a oniomania foi associada a altos níveis de angústia psicológica, incluindo ansiedade e depressão.
Mas esta problemática também é estudada em território nacional. A título de exemplo, em O Consumo Compulsivo: Perturbação Psicopatológica, Influências Sociais ou Compensação do Afeto?, Hugo Pinto examina o comportamento de consumo compulsivo através de três lentes principais: como uma perturbação psicopatológica, como resultado de influências sociais e como uma forma de compensação afetiva. O autor procura entender as causas subjacentes ao consumo compulsivo. Argumenta que este comportamento é impulsionado por uma necessidade de aliviar a ansiedade ou outras emoções negativas, com a compra a atuar como uma forma de auto-medicação. A falta de controle sobre o impulso de comprar é uma característica central desta visão.
Naquilo que diz respeito à importância da literacia financeira neste campo, Graça Vilar assume que esta “pode ser importante, mas diria que também é muito importante a literacia em saúde para dotar o cidadão de competências sociais e cognitivas, para poder tomar decisões mais esclarecidas e informadas quanto à sua saúde, global e em particular saúde mental”, afirmando que “os media são uma fonte poderosa para alertar as pessoas acerca dos riscos dos comportamentos aditivos”.
“Todas as estratégias que a pessoa desenvolva em planear as suas finanças, os seus gastos mensais bem como o reconhecimento da necessidade real dos produtos a adquirir são extremamente importantes. Contudo, sendo o comportamento compulsivo de consumo caracterizado como um estímulo irresistível a um descontrole de adquirir bens materiais, conduzindo consequentemente a pessoa a algum malefício económico, social ou psicológico deve a mesma ser ajudada a reconhecer os seus comportamentos de risco”, evidencia a psiquiatra, explicando que, apesar de ainda se dispor de pouca evidência científica, “alguns autores referem-se à psicoterapia cognitivo-comportamental com maior eficácia na abordagem terapêutica desta problemática, relacionada aos comportamentos aditivos”.
“Nas situações em que possa coexistir critérios de uma perturbação psiquiátrica poderá ser necessário intervenção psicofarmacológica conjuntamente com a psicoterapia cognitivo -comportamental”, afirma, sendo que, em 2007, em A Review of Compulsive Buying Disorder, publicado na World Psychiatry, o autor fez uma revisão sistemática do distúrbio de compra compulsiva e destacou a dificuldade em definir e diagnosticar a oniomania, devido à falta de consenso sobre critérios de diagnóstico. O estudo sugeriu que o distúrbio partilha características com outros distúrbios como o jogo patológico. A revisão concluiu que tanto intervenções psicoterapêuticas, como a terapia cognitivo-comportamental, quanto tratamentos farmacológicos, como o uso de antidepressivos, podem ser eficazes para alguns doentes, embora mais pesquisas sejam necessárias para estabelecer protocolos de tratamento.
Os picos do consumo
Como partilha Graça Vilar, a literacia financeira e a ajuda psicológica e/ou psiquiátrica consistem duas ferramentas poderosas para lidarmos com a eventual oniomania ou mesmo com esta quando se instala. No entanto, este distúrbio de compra compulsiva tende a agravar-se em determinadas épocas do ano, como o Natal, devido a vários fatores sociais, culturais e psicológicos que aumentam a pressão para consumir. Embora a quantidade de estudos específicos sobre a exacerbação da oniomania durante o Natal seja limitada, há evidências que sugerem que essa época é particularmente árdua para indivíduos com tendência para o comportamento de compra compulsiva.
Embora não sejam especificamente focadas no Natal, há pesquisas sobre a relação entre o Transtorno Afetivo Sazonal (SAD) e o comportamento de compra compulsiva, sugerindo que mudanças sazonais, como a menor exposição à luz durante o inverno, podem exacerbar comportamentos compulsivos. O Natal, ocorrendo no inverno (em muitas regiões), pode potencialmente agravar este efeito.
Por outro lado, estudos em psicologia do consumidor mostram que o stress relacionado com as compras de fim de ano pode aumentar a impulsividade e o comportamento compulsivo. Por exemplo, um estudo conduzido por Dittmar (2005) explorou como a compra compulsiva está ligada à identidade e como a pressão para comprar presentes durante o Natal pode intensificar essa compulsão.
Os estudos também têm demonstrado que o aumento da exposição a estímulos de marketing, especialmente durante épocas festivas, pode levar a uma maior incidência de compras impulsivas e compulsivas. Rick, Cryder & Loewenstein (2008) discutem como as promoções sazonais e os ambientes de compras festivos podem aumentar a probabilidade de comportamento impulsivo e compulsivo.
Uma época que modificou significativamente o modelo de consumo online foi a da pandemia de covid-19. Tanto que, em novembro de 2020, o Instituto Nacional de Estatística (INE) divulgou que em Portugal havia aumentado o número de utilizadores do e-commerce, com o registo mais alto em 18 anos. Mas, apesar dessa subida, o valor situava-se abaixo da média da União Europeia.