Genebra foi o primeiro local que visitei na Suíça, quando ainda não imaginava que, anos mais tarde, chamaria a este país uma segunda casa. Foi uma cidade que me encantou e percorri-a, curioso e fascinado, descobrindo a terra em que o meu Borges encontrou a tranquilidade, no final da vida, e onde acabou por falecer, em 1986. Naturalmente, fui ao Cimetière des Rois encontrar a sua magnífica campa. Num momento de paz e reflexão, tive a certeza de que o escritor argentino estava no local certo.
À época, escrevi uma reportagem sobre esses dias helvéticos e partilhei com vários amigos os momentos mais íntimos dessa experiência. O meu encontro borgiano foi especialmente discutido com um amigo mais velho que, por uma coincidência incrível, estava em Genebra numa viagem de trabalho quando Jorge Luis Borges morreu. Grande apreciador da sua obra, em especial poética, foi ao funeral do escritor prestar-lhe homenagem. Era uma história extraordinária!
Há uma década que não ia a Genebra e, no final de Julho passado, inesperadamente, regressei. Encontrei um velho amigo e tracei um plano simples: revisitar Borges e dar a obrigatória volta bibliófila. O resto logo se via…
O dia soalheiro permitiu um almoço numa esplanada à beira lago para provar a famosa perca local. Depois, o objectivo era o cemitério. O trânsito era intenso e os carros com matrícula francesa pareciam ser mais dos que os locais. A inobservância de regras básicas de condução, a que não ligamos em Portugal, era também pouco suíça. No jardim do Plainpalais havia uma feira de velharias e não resisti a espreitar alguns caixotes de alfarrábios. Estranhamente, nenhum me despertara a curiosidade. Era um mau augúrio…
No caminho até ao cemitério reparei em várias lojas fechadas e na degradação urbana de que não me lembrava de visitas anteriores. Mesmo passado tanto tempo, sabia ainda as direcções até à campa. Na lápide salta à vista a inscrição «And ne forhtedon na» (E que não tiveram medo), uma frase retirada de um poema épico do século X sobre a Batalha de Maldon, entre anglo-saxões e vikings. «Não tenhas medo», que melhor leitmotiv para a nossa existência? E lá me demorei, sem ser incomodado, recordando outras idas e outras vidas.
Reencontrei Borges no centro, porque na Grand’Rue há uma placa, no número 28, que assinala que o escritor argentino ali viveu. Continuei o meu percurso até à irresistível Illibrairie – Beaux livres. Não estranhei os turistas que no exterior fotografavam a bela livraria, mas ao entrar achei que os clientes que estavam prestes a sair se tinham enganado. Eram muito jovens e pareciam figurantes de um anúncio de um festival de Verão ou de uma bebida colorida qualquer. Olharam para mim com espanto e provavelmente com a mesma desconfiança que o meu olhar lhes transmitiu. Aí, o dono da livraria dirigiu-se a mim, num tom seco, perguntando se precisava de ajuda. Estava só a ver, disse-lhe.
Era o único cliente na livraria e estava a apreciar umas primeiras edições num estado impecável quando o proprietário, notando o meu interesse, voltou a falar comigo. Disse-lhe que tinha lá estado há dez anos e comprado um livro da Lucette Destouches. Gosto muito do Céline, expliquei.
Começámos uma conversa amistosa. Sobre livros, claro, mas não só. A beleza daquela livraria tornara-se um problema nesta era do turismo de massas, um fenómeno que ele considerava, acertadamente, uma forma de poluição. Para minimizar o impacto, tinha posto vários avisos a proibir fotografias e filmagens. Falei-lhe do caso da Lello, no Porto, que ele conhecia, entre outros processos de adaptação comercial que descaracterizam as livrarias mais famosas. Mas o dono não queria isso, pretendia apenas fazer o seu trabalho, no meio dos seus livros e de quem os aprecia. Então, confidenciou-me que está a considerar mudar-se para outro local. Lendo a interrogação no meu olhar, contou-me que não tem sossego e que há pessoas que entram de telemóvel em punho, em directo para as redes sociais. Uma das vezes, quando interrompeu uma jovem que filmava a livraria para mostrar na Internet, disse-lhe: «Está numa livraria, tenha respeito.» A rapariga, atónita, olhou à volta e retorquiu: «Qual é o conceito?»
Por muito estranho que possa soar, há uma geração em que muitos não entendem a necessidade de uma livraria ou de livros. Qual será então «o conceito» destes jovens? O imediatismo de uma imagem? É expressão de quem recusa a realidade e a memória preferindo a fantasia efémera. Sinal destes tempos…
À saída, lembrei-me de um belo poema de Borges sobre um desgosto amoroso que sempre me impressionou: «1964». Recordei que o meu amigo que esteve no seu funeral o costumava recitar na língua original. Ya no es mágico el mundo… Assim começa. E pensei que, para mim, Genebra também já não é mágica. Mas a magia, como a Natureza, adora esconder-se…