Investigadores estudam relação entre a escravatura e a riqueza dos membros do Congresso dos EUA

Um estudo publicado na revista PLOS ONE concluiu que, dos 535 membros do 117º Congresso dos EUA, aqueles que mais riqueza possuem são os que têm antepassados esclavagistas. O i recorda a entrevista que realizou a Joe Feagin, um dos sociólogos e teóricos sociais norte-americanos mais aclamados, que realizou uma investigação extensiva sobre questões raciais…

Um estudo recente revelou uma ligação surpreendente entre a ascendência de esclavagistas e a riqueza atual dos membros do Congresso dos EUA. Publicado na revista PLOS ONE, o estudo resultou da análise de todos os 535 membros do 117º Congresso dos EUA, comparando a riqueza líquida daqueles com ascendência de esclavagistas com os que não têm essa herança. Os congressistas cujos antepassados possuíam 16 ou mais escravos têm, em média, um património líquido quase 4 milhões de dólares (3,58 milhões de euros) superior ao dos seus colegas sem esses antepassados, mesmo após levar em conta fatores como idade e educação.
Estes resultados surgem num momento em que as discussões sobre equidade racial, reparações e as consequências de longo prazo da escravatura estão em destaque no debate nacional. O estudo fornece evidências concretas de que as vantagens económicas obtidas através da escravatura continuam a reverberar na sociedade americana mais de 150 anos após a abolição.

Em dezembro de 2020, Joe Feagin, um reconhecido sociólogo e teórico social norte-americano, concedeu uma entrevista ao i. Explicou o impacto do racismo sistémico nos EUA: um problema que, segundo ele, tem raízes profundas e estruturais na sociedade americana desde a sua fundação. Feagin argumentou que o racismo sistémico nos EUA remonta a mais de 400 anos, iniciando com a colonização europeia e a subsequente escravização de africanos e afro-americanos. Frisou que a Constituição de 1787 foi elaborada por proprietários de escravos e pelos seus aliados, e foi utilizada para legitimar a opressão racial desde o início da nação. Feagin explicou que essa estrutura de opressão racial persistiu através das leis de Jim Crow após a abolição da escravatura em 1865, perpetuando uma forma de segregação racial que durou até 1969.

Neste contexto, também é importante lembrar que, segundo Feagin, a opressão racial nos EUA não foi apenas um produto das leis e políticas, mas também uma consequência das atitudes e ações dos europeus que controlaram o desenvolvimento inicial do país. Apontou que, durante os primeiros 350 anos da História americana, houve uma opressão racial extrema, que só começou a ser contestada de forma significativa com o Movimento dos Direitos Civis na década de 1960. Feagin argumentou que a narrativa dominante na sociedade americana, a que ele chama “moldura racial branca”, é uma construção social que justifica e perpetua a opressão racial. Esta moldura é composta por ideias, estereótipos, emoções e inclinações racializadas que justificam a exploração e a violência contra os negros e outras pessoas de cor. Exemplificou essa narrativa com a forma como as plantações esclavagistas são frequentemente romantizadas na cultura popular, sem abordar a brutalidade e a exploração que nelas ocorreram.

Além disso, Feagin destacou a persistência do racismo sistémico na sociedade contemporânea dos EUA, apontando que muitas instituições, incluindo o sistema de justiça criminal e a polícia, ainda operam sob estruturas que discriminam desproporcionalmente afro-americanos e outras minorias raciais. Afirmou que o racismo sistémico contribuiu para a desigualdade económica persistente, com famílias negras possuindo significativamente menos riqueza em comparação com as famílias brancas, tal como foi provado também agora neste estudo recente.

Feagin concluiu que, para reduzir ou eliminar o racismo sistémico, é necessário um movimento coletivo e organizado similar ao Movimento dos Direitos Civis, que envolva não apenas afro-americanos, mas todos os americanos de cor e os seus aliados, para lutar por instituições sociais, económicas e políticas mais justas e igualitárias. Sugeriu que protestos em massa e uma mudança na narrativa dominante são essenciais para alcançar uma sociedade verdadeiramente democrática e igualitária.

Regressando ao estudo atual, os investigadores Neil K. R. Sehgal e Ashwini R. Sehgal realizaram o mesmo para explorar o modo como o passado esclavagista da América influencia o cenário social e económico atual. Para realizar a análise, combinaram as divulgações financeiras obrigatórias de todos os membros do Congresso com uma investigação genealógica detalhada conduzida pela Reuters, que identificou os congressistas que tinham antepassados esclavagistas e quantas pessoas esses antepassados escravizaram.

Os resultados mostram uma disparidade de riqueza marcante. A riqueza líquida mediana de todos os membros do Congresso era de 1,28 milhões de dólares (1,14 milhões de euros). No entanto, os membros cujos antepassados escravizaram 16 ou mais pessoas tinham uma riqueza líquida mediana de 5,62 milhões de dólares (5,02 milhões de euros) – mais de cinco vezes a média geral.


O estudo desafia a ideia de que os impactos económicos da escravidão se dissiparam rapidamente após a abolição, sugerindo, em vez disso, que a riqueza gerada pelo trabalho escravo tem sido persistente, passando de geração em geração e manifestando-se hoje nos corredores do mais alto órgão legislativo dos EUA. É importante notar que o estudo não sugere que os legisladores atuais sejam pessoalmente responsáveis pelas ações de seus antepassados. Em vez disso, realça as formas sistémicas de como a riqueza e o privilégio podem ser transmitidos através das gerações.


Essa transmissão ocorre por meio de vários mecanismos, como leis de herança, acesso a instituições educacionais de elite, entrada em profissões bem remuneradas e reconhecidas e a capacidade de influenciar sistemas políticos e económicos para manter vantagens. Os investigadores descobriram que a disparidade de riqueza era particularmente pronunciada entre os congressistas brancos. Ao analisar apenas os membros brancos do Congresso, aqueles com antepassados que possuíam 16 ou mais escravos tinham um património líquido 3,41 milhões de dólares (3,05 milhões de euros) superior ao dos seus colegas sem ascendência esclavagista.
O estudo levanta igualmente questões importantes sobre representação e formulação de políticas. Uma parte significativa dos membros do Congresso beneficia de uma riqueza geracional enraizada na escravidão e tal pode influenciar as suas perspectivas sobre políticas económicas, iniciativas de justiça racial e propostas de reparações. Também destaca a importância de compreender os impactos de longo prazo da História. Embora seja fácil pensar na escravidão como um passado distante, esses resultados mostram como as suas repercussões económicas podem reverberar ao longo do tempo, potencialmente moldando oportunidades e resultados para indivíduos e famílias em gerações posteriores. 

“Os membros do Congresso têm um poder significativo para moldar políticas e definir agendas nacionais. Compreender as disparidades de riqueza dentro deste grupo influente pode impulsionar conversas sobre equidade económica e motivar os congressistas a apoiar políticas que abordem injustiças históricas”, concluem os investigadores num comunicado enviado aos órgãos de informação norte-americanos. 

Importa referir que foram recolhidos dados de divulgação financeira de todos os 535 membros do 117º Congresso dos EUA a partir de 15 de abril de 2021.