Não se pense que o recente aumento do suplemento por serviço e risco nas forças de segurança resolve os graves problemas estruturais que se vêm a agudizar há muito. É, pois, prudencial não se hastear esta bandeira muito alto, passando a efabulada impressão que este suplemento colocará fim a um processo de destruição de dignidade e atractividade numa carreira que há muito deixou de estar nas prioridades dos jovens deste país. O suplemento é um ganho que certamente fará diferença, mas não será mais do que um penso rápido. Reclamam-se, por isso, outras medidas e alterações que não passam necessariamente por mais dinheiro, seguindo exemplos diversos de outros ordenamentos aqui na nossa velha Europa, e que melhoram substancialmente as condições e expectativas organizacionais dos Polícias. Sem prejuízo de poder ser repetitivo, apontaria os seguintes caminhos de reflexão:
i. Relembrando, ser Polícia é uma profissão de desgaste rápido (embora, curiosa e estranhamente não seja formalmente reconhecida como tal), do ponto de vista físico e psicológico, com uma perda média de 10 anos na esperança média de vida face ao clima de elevada intensidade operacional e sujeição a quadros de elevada tensão emocional. Não ter implementado um Plano de Higiene e Segurança no Trabalho, já discutido e negociado com o anterior Governo em 2021, para além de necessário, coloca Portugal num nível submundista de quem reage apaticamente às elevadas taxas de suicídio nas forças de segurança (o dobro da população portuguesa) e de doença prolongada (de diversas naturezas) que, para além de penosas para os próprios, retira [ainda mais] polícias do apoio directo ao cidadão;
ii. Adopção de um sistema de apoio a famílias, com a criação de acessos prioritários a jardins de infância e berçários, ao ensino pré-escolar ou, na sua falta, concedessem condições de acesso à oferta da rede privada;
iii. Implementação de medidas locais que discriminem positivamente os Polícias que habitem e laborem em zonas de maior risco, atribuindo-lhes benefícios fiscais, acesso facilitado ao crédito (vejam-se as medidas que agora o Estado propôs para os jovens na aquisição de habitação), e, como por exemplo o Concelho de Vila Franca de Xira adoptou, recentemente, uma isenção parcial do IMI[1] que abarca sectores especiais como as Forças de Segurança e os Bombeiros. As autarquias podem e devem, seguindo o exemplo de Vila Franca, fazendo parte da solução, em aberta e sinalagmática articulação com o Estado Central.
iv. Ponderar-se a possibilidade de majoração, em contagem de tempo para a pré-aposentação e aposentação, para Polícias que prestem serviço operacional em zonas de maior intensidade operacional, designadamente centros metropolitanos, premiando quem mais desgaste sofreu ao longo da vida policial no combate ao crime, fazendo-o numa rotação de 24h, em qualquer dia da semana. Isto já acontece não só lá fora, mas também em algumas especialidades, por exemplo, nas forças armadas. A par de um regime de pré-aposentação mais favorável, esta seria uma medida que compensaria quem mais impacto negativo acumula ao longo da vida, assegurando-lhe uma passagem à situação de pré-aposentação, mais prematura e sem perdas remuneratórias;
v. Contribuir para a despolicialização de serviços de apoio, algo que há muito se fala, substituindo os Polícias que assumem serviços administrativos que não sejam eminentemente policiais, por assistentes técnicos e técnicos superiores a quem seria concedido um benefício, como outrora, de serem abonados com uma percentagem do suplemento por serviço nas forças de segurança, designadamente na percentagem que integra a componente variável do suplemento, de 20% sobre a sua base salarial (tal como aconteceu agora para algumas das carreiras da PJ que não da investigação criminal). Assim, acreditamos, conseguiríamos não só mitigar a elevada mobilidade dos funcionários [poucos já] das carreiras civis da administração pública, permitindo a libertação de centenas de Polícias para a 1.ª linha de resposta, com ganhos operacionais e poupanças pecuniárias de monta tendo em conta as diferenças salariais;
vi. Outra opção passaria por ponderar-se a possibilidade de ser contemplada uma formação específica para Polícias que na origem, ou durante a carreira, não queiram desempenhar funções operacionais, podendo ser formados, para o desempenho de funções de apoio à actividade operacional. Era uma forma de abrir as portas de acesso a jovens que não lidando bem com risco da profissão, nutrem especial simpatia e vontade em pertencer e trabalhar em instituições desta natureza;
vii. Ponderar-se a descentralização dentro da desconcentração, isto é, permitir uma aproximação mais rápida dos Polícias aos seus locais de residência e, assim, das suas famílias, através da deslocação de unidades e serviços para outras zonas do país, designadamente para o interior do país;
viii. Apostar no trabalho a distância para determinadas funções, tornando o processo de recrutamento mais atrativo e verdadeiramente nacional;
ix. Atribuição de livre-trânsito no acesso aos transportes públicos, concebendo gratuitidade na deslocação dos Polícias para o seu local de residência (familiar), como já acontece com os Polícias da Polícia Judiciária[2];
x. Cativação e alocação graciosa de vagas no ensino superior para satisfação de necessidades específicas da instituição, com ganhos não só para esta mas para os candidatos seleccionados;
xi. Alargamento das compensações e comparticipações (sociais e médicas) a Polícias que tenham sido feridos no desempenho da sua missão, bem como a eventual institucionalização de seguros de acidentes de trabalho que assegurem uma rápida retribuição pecuniária aos polícias que sofram destas causalidades;
xii. Alargamento do âmbito de aplicação do suplemento de residência a Polícias que estejam a trabalhar a mais de 50km de distância do seu local de trabalho.
xiii. Diminuição das contribuições para o SAD (de 14 para 12 meses) ou, em alternativa, a redução da taxa fixa de 3.5% para 1.5% ou 2%, cabendo ao Estado o especial dever de assegurar a melhor disponibilidade médica para uma profissão que, como vimos, tem um desgaste especialmente desgastante e penosa;
Estas são algumas, de um vasto acervo de medidas que podem, sem grandes dúvidas, fazer imensa diferença na carreira e vida dos Polícias, contribuindo para uma maior dignificação da profissão, melhorando os níveis de retenção, de captação e da tão apregoada atractividade. Enquanto escrevia este artigo acabava de ocorrer mais um ataque hediondo num festival na cidade de Solingen, na Alemanha com três pessoas esfaqueadas. Para termos um Estado forte, que responda aos mais elevados e vindouros desafios securitários que espreitam, precisamos de Forças de Segurança fortes, robustas e motivadas. Acreditamos que este é o caminho.
[1] Regulamento Administrativo n.º 528/2024 de Atribuição de Benefícios Fiscais do Município de Vila Franca de Xira
[2] Art.º 18.º n.º 1 do Estatuto Profissional da PJ, Decreto-Lei n.º 138/2019