Felizmente, as missivas enviadas ao jovem Franz Xaver Kappus foram publicadas por este já depois da morte do poeta de As elegias de Duino e tornaram-se uma referência. Temos a fortuna de ter no nosso país uma tradução feita por uma das referências maiores da vida cultural portuguesa contemporânea, cuja morte, em 2014, representou a perda de um lutador incansável que se bateu pela Língua, pela Cultura e pelos valores da Civilização Europeia. Vasco Graça Moura, para quem a poesia era «uma questão de técnica e de melancolia», além de traduzir, também prefaciou e anotou a edição publicada pela Modo de Ler, bem ilustrada com fotografias e retratos de Rilke.
Em 1902, Franz Xaver Kappus estava na Academia Militar em Wiener Neustadt a ler os poemas de Rainer Maria Rilke, quando soube pelo capelão da Academia que Rilke havia sido aluno da Escola Militar até os pais o terem mudado para outro estabelecimento de ensino devido à sua falta de resistência física. Kappus, que duvidada da sua vocação militar e aspirava a ser poeta, decidiu que Rilke era a pessoa indicada para pedir conselhos literários e não só.
Percebemos pela primeira carta, escrita por Rilke em Paris, no dia 17 de Fevereiro de 1903, que Kappus lhe enviou os seus versos, pedindo-lhe opinião. Na resposta de Rilke antevê-se uma série de conselhos e reflexões sobre a vida que ultrapassam a mera crítica literária, exercício prontamente recusado. Diz o poeta: «Pergunta-me se os seus versos são bons. É a mim que pergunta. Já antes perguntou a outros. Envia-os às revistas. Compara-os com outros poemas e fica inquieto se algumas redacções recusam as suas tentativas. Ora bem (já que me autorizou a aconselhá-lo), peço-lhe que se deixe de tudo isso. O senhor olha para fora e é exactamente o que não deveria fazer agora. Ninguém pode dar-lhe conselhos ou ajudá-lo, ninguém. Há um único meio. Entre dentro de si. Procure o motivo que o faz escrever; examine se tem raízes até ao lugar mais fundo do seu coração, confesse a si mesmo se viria a morrer no caso de escrever lhe ser vedado. Isto antes de mais nada: pergunte-se na hora mais calada da sua noite: tenho de escrever? Escave em si mesmo em busca de uma resposta profunda. E se esta soar afirmativamente, se o senhor tiver de enfrentar esta questão séria com um forte e simples “Sim, tenho”, então construa a sua vida em função dessa necessidade; a sua vida terá de ser um sinal e um testemunho desse impulso até nas horas mais indiferentes e insignificantes. Então aproxime-se da Natureza. Então tente dizer, como se fosse o primeiro homem, o que vê e vive e ama e perde.»
A partir desta primeira resposta, inicia-se um diálogo espaçado no tempo e variado no espaço, já que Rilke escreve de diferentes cidades, dadas as suas viagens. Mas é um diálogo do qual temos de imaginar, pelo sentido, uma das partes. Como afirma Vasco Graça Moura no prefácio, «As cartas a um jovem poeta não são, pois, uma obra escrita e estruturada pelo seu autor com vista à edição em livro. São uma colectânea de peças irregularmente intervaladas no tempo, organizadas por Franz Xaver Kappus muito depois de as ter recebido. E Kappus viveu até 1966, sem nunca ter esclarecido que outras cartas lhe teriam sido enviadas pelo autor das Elegias de Duino. Face aos critérios que, hoje em dia, costumam orientar a publicação póstuma das correspondências de escritores, teria sido bem interessante conhecermos não só as restantes cartas de Rilke, mas também as que Kappus lhe enviou…»
É sem dúvida uma questão pertinente e que nos aviva a curiosidade e adensa o mistério. Mas não será o mistério intrínseco à poesia? Recordo o que a esse respeito dizia, muito certeiro e acertado, Eudoro de Sousa: «O mistério da poesia é a poesia de um mistério – a poesia do indescritível. Não haverá, nestes tempos, uma irremediável contradição? Talvez. Mas talvez o poeta não use as palavras senão porque não saiba dizer de outro modo o que por palavras não disse. O poema autêntico é a invocação de um mistério.»
No entanto, para além do interesse natural de uma edição completa (hoje impossível) para os estudos literários, temos de reconhecer que as Cartas a um jovem poeta se tornaram uma obra de Rilke, póstuma e imprevista, à qual não podemos ficar indiferentes.
Nesta excelente tradução, há uma nota especial a fazer. Graça Moura traduz Sehnsucht, o desejo ou anseio que significa também uma falta imensa, por Saudade, esse sentimento tão português que em Rilke faz todo o sentido.
Por fim, não resisto a citar Paul Valéry: «Dos homens mais raros que eu já conheci, um dos mais sedutores, e de muitos o mais misterioso, foi Rilke.» Uma descrição que escreveu numa bonita e sentida recordação publicada no livro Rilke et la France, de 1942, que termina dizendo: «É por isso que pensar nele, pensar em nós, é presentemente pensar em muitas outras coisas… Por exemplo, naquilo que havia de futuro no passado, naquilo que haverá de passado no futuro.»