O epistolário rilkeano e o mistério da poesia

As Cartas a um jovem poeta, de Rainer Maria Rilke (1875-1926), são uma obra intemporal cujo nascimento não foi previsto pelo autor.

Felizmente, as missivas enviadas ao jovem Franz Xaver Kappus foram publicadas por este já depois da morte do poeta de As elegias de Duino e tornaram-se uma referência. Temos a fortuna de ter no nosso país uma tradução feita por uma das referências maiores da vida cultural portuguesa contemporânea, cuja morte, em 2014, representou a perda de um lutador incansável que se bateu pela Língua, pela Cultura e pelos valores da Civilização Europeia. Vasco Graça Moura, para quem a poesia era «uma questão de técnica e de melancolia», além de traduzir, também prefaciou e anotou a edição publicada pela Modo de Ler, bem ilustrada com fotografias e retratos de Rilke.

Em 1902, Franz Xaver Kappus estava na Academia Militar em Wiener Neustadt a ler os poemas de Rainer Maria Rilke, quando soube pelo capelão da Academia que Rilke havia sido aluno da Escola Militar até os pais o terem mudado para outro estabelecimento de ensino devido à sua falta de resistência física. Kappus, que duvidada da sua vocação militar e aspirava a ser poeta, decidiu que Rilke era a pessoa indicada para pedir conselhos literários e não só.

Percebemos pela primeira carta, escrita por Rilke em Paris, no dia 17 de Fevereiro de 1903, que Kappus lhe enviou os seus versos, pedindo-lhe opinião. Na resposta de Rilke antevê-se uma série de conselhos e reflexões sobre a vida que ultrapassam a mera crítica literária, exercício prontamente recusado. Diz o poeta: «Pergunta-me se os seus versos são bons. É a mim que pergunta. Já antes perguntou a outros. Envia-os às revistas. Compara-os com outros poemas e fica inquieto se algumas redacções recusam as suas tentativas. Ora bem (já que me autorizou a aconselhá-lo), peço-lhe que se deixe de tudo isso. O senhor olha para fora e é exactamente o que não deveria fazer agora. Ninguém pode dar-lhe conselhos ou ajudá-lo, ninguém. Há um único meio. Entre dentro de si. Procure o motivo que o faz escrever; examine se tem raízes até ao lugar mais fundo do seu coração, confesse a si mesmo se viria a morrer no caso de escrever lhe ser vedado. Isto antes de mais nada: pergunte-se na hora mais calada da sua noite: tenho de escrever? Escave em si mesmo em busca de uma resposta profunda. E se esta soar afirmativamente, se o senhor tiver de enfrentar esta questão séria com um forte e simples “Sim, tenho”, então construa a sua vida em função dessa necessidade; a sua vida terá de ser um sinal e um testemunho desse impulso até nas horas mais indiferentes e insignificantes. Então aproxime-se da Natureza. Então tente dizer, como se fosse o primeiro homem, o que vê e vive e ama e perde.»

A partir desta primeira resposta, inicia-se um diálogo espaçado no tempo e variado no espaço, já que Rilke escreve de diferentes cidades, dadas as suas viagens. Mas é um diálogo do qual temos de imaginar, pelo sentido, uma das partes. Como afirma Vasco Graça Moura no prefácio, «As cartas a um jovem poeta não são, pois, uma obra escrita e estruturada pelo seu autor com vista à edição em livro. São uma colectânea de peças irregularmente intervaladas no tempo, organizadas por Franz Xaver Kappus muito depois de as ter recebido. E Kappus viveu até 1966, sem nunca ter esclarecido que outras cartas lhe teriam sido enviadas pelo autor das Elegias de Duino. Face aos critérios que, hoje em dia, costumam orientar a publicação póstuma das correspondências de escritores, teria sido bem interessante conhecermos não só as restantes cartas de Rilke, mas também as que Kappus lhe enviou…»

É sem dúvida uma questão pertinente e que nos aviva a curiosidade e adensa o mistério. Mas não será o mistério intrínseco à poesia? Recordo o que a esse respeito dizia, muito certeiro e acertado, Eudoro de Sousa: «O mistério da poesia é a poesia de um mistério – a poesia do indescritível. Não haverá, nestes tempos, uma irremediável contradição? Talvez. Mas talvez o poeta não use as palavras senão porque não saiba dizer de outro modo o que por palavras não disse. O poema autêntico é a invocação de um mistério.»

No entanto, para além do interesse natural de uma edição completa (hoje impossível) para os estudos literários, temos de reconhecer que as Cartas a um jovem poeta se tornaram uma obra de Rilke, póstuma e imprevista, à qual não podemos ficar indiferentes.

Nesta excelente tradução, há uma nota especial a fazer. Graça Moura traduz Sehnsucht, o desejo ou anseio que significa também uma falta imensa, por Saudade, esse sentimento tão português que em Rilke faz todo o sentido.

Por fim, não resisto a citar Paul Valéry: «Dos homens mais raros que eu já conheci, um dos mais sedutores, e de muitos o mais misterioso, foi Rilke.» Uma descrição que escreveu numa bonita e sentida recordação publicada no livro Rilke et la France, de 1942, que termina dizendo: «É por isso que pensar nele, pensar em nós, é presentemente pensar em muitas outras coisas… Por exemplo, naquilo que havia de futuro no passado, naquilo que haverá de passado no futuro.»