Para meu gáudio, a RTP 2 está a exibir uma nova versão televisiva de Veterinário de Província (All Creatures Great and Small), baseada nos livros parcialmente autobiográficos do veterinário britânico James Alfred Wight (1916-1995), mais conhecido pelo pseudónimo de James Herriot (foto). Tendo visto e apreciado a primeira adaptação para a TV das obras de Herriot (uma produção da BBC com 90 episódios, transmitida entre 1978 e 1990), considero esta segunda versão, da Channel 5, ainda melhor.
Tal como o título em português sugere (pese, embora, a sua banalidade face ao original), trata-se das aventuras de um veterinário no mundo rural. Recém-licenciado, o protagonista, James Herriot, enfrenta uma realidade profissional muito mais dura e complexa do que aquilo que aprendera nos livros. Para agravar a situação, depara-se frequentemente com a interferência da criatura que mais tende a complicar tudo: o ser humano. A ação, num registo de comédia dramática, começa na década de 1930, em Darrowby, uma pequena cidade ficcional de Yorkshire, no norte de Inglaterra, girando em torno do quadrilátero constituído por James, Siegfried Farnon (veterinário e patrão de James), Tristan (o imaturo irmão de Siegfried e aspirante a veterinário) e a Sra. Hall (a amável governanta).
Os oito livros de Wight/Herriot que deram origem à nova versão televisiva foram publicados entre 1970 e 1992 (em 2020 já tinham vendido 60 milhões de exemplares). Alguns deles foram adaptados ao cinema logo em 1975 e 1976. Além da sua primeira adaptação para a TV, a BBC também exibiu, em 2011, Young James Herriot, uma série em três episódios sobre a juventude do autor.
A relação entre humanos e animais reflete a nossa própria trajetória cultural, social, ética e emocional, e a prática da medicina veterinária, que é milenar, exemplifica essa evolução. Os registos mais antigos conhecidos sobre o tema datam de há 4 000 anos e são provenientes do Egito. No entanto, existem vestígios arqueológicos que sugerem que, cerca de um milénio antes, ainda no Neolítico, os humanos já realizavam a trepanação (perfuração) do crânio de vacas. Do Império Romano do Oriente chegou até nós Hippiatrica (séc. V ou VI d.C.), uma compilação bizantina de antigos textos gregos dedicados a cuidados e tratamentos dos cavalos. Contudo, o primeiro tratado abrangente dedicado à anatomia de uma espécie não humana foi Anatomia do Cavalo, publicado pelo italiano Carlo Ruini em 1598.
A primeira escola de medicina veterinária foi fundada em Lyon, em 1761, pelo francês Claude Bourgelat, um advogado que se interessava por cavalos. Distinguiu-se pelo pioneirismo de uma prática médica com base científica, integrando conceitos da história natural, química, medicina humana e anatomia comparada. No Reino Unido, o Veterinary College of London, fundado em 1791, foi a primeira instituição do género. A Escola de Medicina Veterinária da Universidade de Glasgow, na Escócia (onde James Wight se licenciou em 1939), foi fundada em 1861, sendo hoje, de acordo com o QS World University Rankings, uma das dez melhores escolas europeias nesta área. Em Portugal, o ensino das ciências veterinárias teve início em 1830, com a criação da Real Escola de Veterinária. Esta, em 1852, foi integrada no Instituto Agrícola, que mudou diversas vezes de nome. Já na República, continuou a passar por diversas reformas, acabando, em 1930, por integrar a Universidade Técnica de Lisboa, que, em 2013, se fundiu com a Universidade de Lisboa. Atualmente, é também possível estudar medicina veterinária nas universidades do Porto, de Trás-os-Montes e Alto Douro, de Évora e em algumas instituições privadas.
Veterinário de Província faz-me lembrar outra produção memorável, e portuguesa: Retalhos da Vida de Um Médico, baseada no romance homónimo de 1949 de Fernando Namora (1919-1989). Também autobiográfico e profundamente humanista, narra os primeiros anos do autor como médico na Beira Baixa e no Alentejo. Adaptado ao cinema em 1963 por Jorge Brum do Canto, foi transposto para o pequeno-écran por Artur Ramos, tendo passado como minissérie na RTP 1, em 1980.
Nos tempos que correm, seria desejável que mais séries como estas, que abordam despretensiosamente a essência da humanidade, passassem nas televisões. Lembro-me de que Veterinário de Província era transmitida na RTP 1, e, se não me engano, à hora de almoço, o que, na época, a destinava principalmente a jovens, a idosos e a domésticas (como se dizia na altura!). Atualmente, a nova versão da série passa na RTP 2, em horário nobre. O que antes era para um público generalista destina-se agora a um nicho ‘cultural’. Para bom entendedor…