Os telejornais portugueses e George Orwell

Aquilo em que a informação da SIC e da TVI se transformou é preocupante…

As férias permitiram prestar alguma atenção aos telejornais e programas de comentário nacionais. O resultado foi o de sentir invariavelmente um misto de terror, perplexidade e gargalhada. O que se passa com estas estações de televisão? Como se chegou a este estado? Sem contraditório e apostando apenas na diabolização de uma parte, há informação, objectividade e verdadeira análise critica? A ser assim, não estamos principalmente perante uma espécie de órgãos de propaganda?

Se um canal é privado e perfilha ou está ao serviço de uma ideologia, está no seu direito, mas deve assumir essa sua função, seja de direita ou de esquerda, progressista ou conservador, pois se trata de uma regra elementar da honestidade.

Aquilo em que a informação da SIC e da TVI se transformou é preocupante, vejam e oiçam com sentido crítico, o alinhamento é idêntico e os conteúdos e viés ideológico também, na verdade, pouco os distingue de uma missa (sem o contexto da religião). Veja-se o caso das eleições dos EUA, o tempo atribuído à apologia acrítica a Kamala Harris e o tempo destinado ao outro candidato, Donald Trump, onde se destacam apenas meia dúzia de aspetos monstruosos e elencam-se uma torrente de defeitos e vícios. Trump é Trump, mas só tem defeitos? E Kamala, que está no poder há anos, é o anjo salvador da democracia? A degradação da democracia não será responsabilidade de quem detém o poder e a deteriorou a níveis dramáticos?

Devemos acreditar que o grande problema do século XXI ocidental é o fascismo e as populações são manipuladas por gente malévola, mas a propaganda televisiva vai salvar-nos. Infelizmente ver estes canais em pouco difere de assistir ao canal venezuelano Telesur quando falam de Maduro e dos seus opositores.

Escutar o comentariado e a orientação dos pivôs dos telejornais é uma experiência triste. Não consigo deixar de pensar no livro 1984 de Orwell. Nessa distopia o poder garante o bem derradeiro, o trabalho de homogeneização do pensamento e do comportamento é permanente no quotidiano de cada indivíduo e quem não repete os ‘slogans’ vinculados é considerado inimigo, neste caso de extrema-direita. Esta média nacional parece ter também os seus Winstons, que rescrevem a história no ministério da verdade.

O que são muitas peças desses telejornais se não os Orwellianos dois minutos de ódio?

Na distopia de 1984 durante alguns períodos do dia as pessoas dirigem a sua atenção para teletelas onde há um momento especial de dois minutos, o inimigo fabricado surge nos ecrãs caracterizado com todas as malfeitorias. Os espectadores devem sentir em uníssono um ódio profundo. Quem não se identificar com a rejeição desse inimigo é desqualificado como pessoa.

Os minutos do ódio pertencem ao arsenal de peças do regime do Grande Irmão para produzirem o condicionamento mental e a doutrinação dos indivíduos, a submissão e o amor pelo poder vigente. Ora, a realidade não é unicamente de uma só cor, há vários matizes, as narrativas onde os bons são óptimos e os maus péssimos são boas histórias apenas para crianças nos primeiros anos de vida.

Esta doutrinação provoca invariavelmente desconfiança e divisões insanáveis, impedindo o verdadeiro questionamento e a problematização do que surge como anti-sistema e dissidência.