Maio de 1945. Com a II Grande Guerra no seu estertor, o mundo estava demasiado preocupado com outras coisas para prestar atenção à Volta a Espanha que começou no dia 10 com uma etapa entre Madrid e Salamanca. Pela primeira vez os portugueses participavam na prova e eram logo oito: Aniceto Bruno, Império dos Santos, Francisco Inácio, Eduardo Lopes, João Lourenço, Júlio Mourão, Jorge Pereira e João de Jesús Rebelo. Curiosamente, ou talvez não, os únicos estrangeiros dessa Vuelta definitivamente marcada por uma Europa a ferro e fogo.
Era apenas a quinta edição da Vuelta que nos dois anos anteriores estivera suspensa, exatamente devido ao conflito militar. 3803 quilómetros divididos em 19 etapas, uma delas de contrarrelógio. 52 ciclistas à partida; apenas 26 à chegada. Se anteriormente o guia da prova envergava uma camisola laranja, desta vestiria uma patriótica camisola vermelha sangue. Delio Rodríguez seria o grande vencedor. O seu nome completo era Delio Rodríguez Barros e nasceu a 19 de Abril de 1916 na cidade de Ponteareas, província de Pontevedra, na Galiza. Famoso pelo seu estilo de sprinter tinha sofrido a bom sofrer nas duas últimas Voltas a Espanha nas quais estivera presente. Em 1941, imaginem!, venceu 12 etapas e nem assim conseguiu ficar entre os cinco primeiros. Desapontante. Foi Julián Berrendero Gil, conhecido como El Negro de los Ojos Azules por causa da sua pele tisnada e do seu cabelo de azeviche, a festejar o triunfo. No ano seguinte, Julián repetiu a proeza. De 30 de Junho a 19 de Julho, a Vuelta prolongou-se por 3688 quilómetros e Delio venceu nada menos do oito etapas apesar de isso só lhe ter rendido um desconsolador sétimo lugar final. Havia nele, como se compreende, uma sensação de dever por cumprir. O interregno da prova fê-lo preparar-se mentalmente para o regresso em beleza.
O contingente português
A Volta a Espanha tinha tido, nas edições anteriores a 1945, ciclistas vindo de fora, na sua maioria franceses e italianos. A primeira de todas, em 1935, contou até com uma plêiade de concorrentes estrangeiros entre os quais se distinguiam o italiano Edoardo Molinar (que foi quarto), o argentino Antonio Bertola, mais tarde naturalizado italiano (terceiro em 1936), os belgas Antoine Dignef (terceiro), Gustaaf Deloor (vencedor da Vuelta em 1935 e 1936) e François Adam (vencedor de duas etapas), o austríaco Max Bulla (que faria bons resultados na Volta à França), e o holandês Marinus Valentijn (terceiro no Campeonato do Mundo de Estrada em 1933).
Façamos um pequeno resumo para tornar o assunto mais explícito: até 1945, a Vuelta correu-se nos anos de 1935, 1936, 1941 e 1942. Uma geração de jovens desportistas trocara os calções pelas fardas e deram-se à morte nas trincheiras do centro da Europa, sem esquecer que a Guerra Civil de Espanha dizimou, entre 1936 e 1939, cerca de dois milhões de soldados e de civis. Portugal juntara-se às hostes franquistas com a tristemente famosa Legião Viriato concentrando seis mil voluntários, mas não fora vítima das atrocidades acontecidas para lá da raia. Talvez isso explique de certa forma a tal ausência de todos os outros países nesta Vuelta de 1945 que aqui vos trago e justifique os oito lusitanos que estavam na linha de partida de Madrid.
Eis que Berrendero não perde tempo e ataca logo na etapa inicial. Procura a fuga mas é prejudicado pelo vento. João de Jesús Rebelo, nascido a 31 de Janeiro de 1920, em Lisboa (viria a morrer em Sintra no dia 12 de Maio de 1975), corredor da Galindo/Sporting, começa a brilhar na forma como ataca as alturas. Especialista em montanha, o campeão nacional de estrada lança-se numa fuga e chega a ter três minutos de avanço sobre o pelotão aquando da descida do Alto de los Leones. A 20 km da meta é refreado por um forte vento lateral e apanhado por Julián Berrendero, Miguel Gual e Bernardo Capó. Caberá ao homem dos olhos azuis vestir a primeira roja. A chuva cai com intensidade no dia seguinte em quase todo o percurso entre Salamanca e Cáceres. Rebelo tenta outra fuga mas sofre um furo decisivo. A batalha atinge o seu auge no Col de Béjar e Delio Rodríguez Barros e Joaquín Bailón afirmam-se de tal forma que chegam a ter 35 minutos sobre os que os perseguem. Delio liberta-se de Bailón e vence a etapa. É agora o camisola vermelha e tem 29m58s sobre Joaquín e 32m33s sobre Miguel Gual, ambos seus companheiros na equipa da Galindo. Nunca mais deixará de ser primeiro até ao fim.
Não há forma de uma prova de tal envergadura passar a ser entusiasmante depois de estar ganha ao segundo dia. A organização, à conta do jornal Diario Ya, que substituíra o antigo responsável, o vespertino Informaciones, teria de engolir a frustração. Mas como diminuir a façanha de Delio? De forma alguma. Poucos vencedores da Vuelta terão sido tão autoritários. Venceria mais cinco etapas e conquistaria igualmente a classificação por pontos – 2347.
De Cáceres a Badajoz há mais pontos de montanha e Rebelo desafia claramente Berrendero. O duelo manter-se-á até final e o espanhol ganha o Prémio de Montanha com apenas um ponto de vantagem sobre o português: 45-44. Cabe-lhe, aliás, ser um dos protagonistas da Vuelta ao chegar a Madrid no sexto posto da geral, a 1h09m09s do primeiro. Mas não apenas ele. Na mesma terceira etapa, Eduardo Lopes, que corre pela Iluminante, é terceiro. Depois, no dia 13 de Maio, no contrarrelógio Badajoz-Almendralejo, é a vez de Francisco Inácio, também da Galindo/Sporting conseguir um vistoso terceiro lugar. Lopes e Inácio acabariam por desistir, mas ficaram com os seus nomes gravados na Volta à Espanha de 1945.
5ª etapa: Almendralejo-Sevilha. Mais um português aparece na lista dos primeiros. É Aniceto Bruno, corredor da Independiente. Corta a meta em terceiro com o mesmo tempo dos seus predecessores, Vicente Miró e Delio Rodríguez. Antes dele, João Rebelo e Júlio Mourão tinham feito papel de fugitivos frustrados. João Rebelo irá conseguir um terceiro lugar na etapa nº 10, Tortosa-Barcelona, e na 13ª, Zaragoza-San Sebastián. No dia 24 de Maio, no percurso San Sebastián-Bilbao, na subida de Puerto de Sollube, lança uma investida própria de um possesso, foge a toda a gente e conclui em primeiro com 6m27s sobre o segundo, outro português, Aniceto Bruno, que conseguirá o 23º lugar definitivo, com Mourão a ficar no 17º. Mas Rebelo tem peito para novo recital: ganha a etapa 15 entre Santander e Reynosa com 1m50s sobre o segundo, Pedro Font. Termina a exibição com um segundo lugar na etapa 17 entre Gijón e León atrás do teimoso Berrendero, garantindo o segundo lugar na classificação por pontos com 2021. Discretamente, Império dos Santos chega ao fim no 25º lugar. João Lourenço e Jorge Pereira tinham ficado pelo caminho. Mas a honra portuguesa fora defendida.