Artigo que motivou o direito de resposta – “A revolução que nos pariu”, por João Pedro George
Na semana passada, neste jornal, João Pedro George publicou um longo relambório, que, pela sua natureza e extensão, seria impossível comentar em detalhe. O registo literário que George cultiva não é exactamente o da conversa de café, ou de taxista ou de bêbedo, mas o da conversa de porteira: de onde está instalado, tem vista para as escadas, repara em quem sobe e quem desce, observa quem entra e sai, entreouve conversas e, com base nestes indícios, fabrica o seu arrazoado. Não se inibe de trazer à colação laços íntimos ou familiares, por mais irrelevantes que sejam, já que esse condimento serve para apicantar o discurso. Assim, no último texto invoca o nome do meu pai, como (em semana anterior) mencionara o nome de uma pessoa que por muitos anos viveu com a minha mãe, mesmo que tais ligações – que de resto não revestem natureza eletiva – não tenham nenhuma relação com os supostos factos que George denuncia. É, pois, nas suas alegações falsas e injuriosas que desejo concentrar-me, não tanto em prol de esclarecer um articulista que nunca revelou o mais remoto interesse pela verdade, mas em função do eventual leitor desavisado que pudesse ficar com dúvidas sobre os comportamentos inescrupulosos que naquele texto me são atribuídos.
Fui recentemente uma das oito pessoas distinguidas com uma bolsa de escrita, com a duração de seis meses e o valor total de 7500 euros, para a produção de um ensaio subordinado a um tema relacionado com a democracia portuguesa – a sua história, a sua condição presente c o seu futuro. A selecção dos bolseiros resultou de concurso público, lançado conjuntamente pela Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas (DGLAB) e pela Comissão para as Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. O júri avaliou os candidatos em função dos respectivos projectos, assim como do CV de cada um e de amostras de texto a desenvolver, entre outros elementos. Não será irrelevante observar um aspecto que o articulista omite, que é que tais bolsas — no valor de 1250 euros por mês – estipular como condição que, durante o período da bolsa, o bolseiro renuncie a quaisquer outras remunerações de trabalho. Trocado em miúdos, isto significa que a bolsa que me foi atribuída pagará exactamente o mesmo a que eu teria direito no âmbito do subsídio de desemprego, com a diferença de que este último não me exige a apresentação de nenhum trabalho escrito. Se os termos da bolsa são tão desfavoráveis, por que me candidatei? Às vezes as motivações dos nossos actos são obscuras até para nós mesmos, mas suponho que exista aqui uma mistura indestrinçável de masoquismo e vaidade: a convicção, quase certamente exagerada, de que terei algo a dizer, e de que devo dedicar a isso o tempo suficiente para o pôr por escrito.
Mas vamos ao que alega George:
- Que eu terei condicionado, ou estaria em posição de condicionar, a constituição do júri.
- Que sou amigo de pelo menos um dos jurados, o que confirma a parcialidade de que ele já suspeitava.
- Que de meu cálculo não constam publicações relevantes sobre os temas que me proponho tratar, o que só comprova o favoritismo subjacente à atribuição da bolsa.
A razão última para a suspeita que sobre mim recai assenta no facto de, desde finais de Abril de 2022 até Março passado, eu ter integrado o gabinete do então ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva. Tal ponta em causa a lealdade da minha participação no concurso, uma vez 9ue me teria dado a oportunidade de influir na constituição do respectivo júri, ou na determinação do âmbito temático dos trabalhos a seleccionar.
A formação do júri deste concurso (que tem por título “Escrita pela Demecracia” resultou da iniciativa conjunta da Comissão para as Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril e da DGLAB, através de proposta de despacho enviada, em Novembro passado, ao então ministro da Cultura. Tal despacho foi publicado pelo ministro sem quaisquer alterações. Pela minha parte, nas funções que desempenhei, nunca fiz qualquer sugestão de qualquer nome para integrar o júri de qualquer concurso. De resto, à data em que o júri do “Escrita Pela Democracia” foi constituído, a Professora Maria Inácia Rezola, Comissária das Comemorações dos 50 anos do 25/4, e o Dr. Silvestre Lacerda, Director da DGLAB, estariam certamente muito longe de poder congeminar que jurados seriam susceptíveis de vir a simpatizar com um projecto que, por hipótese, eu viesse a decidir submeter a concurso seis meses depois. Se, por absurdo, tivessem querido fazê-lo, teriam errado o alvo: ao contrário do que George alega, nenhum laço de cumplicidade me liga a qualquer dos jurados.
De uma investigação apurada aos pode mais recônditos da internet, George acredita ter extraído três pepitas que reluzentemente demonstram uma suposta cumplicidade pessoal entre mim e Rui Bebiano, um dos membros do júri. Segundo George:
- Bebiano e eu seríamos ambos membros da associação política Fórum Manifesto;
- Em 2014 ou 2015, eu subscrevi um abaixo-assinado de apoio à constituição de uma plataforma eleitoral pela qual Bebiano seria depois candidato;
- Eu publiquei uma vez um texto numa revista electrónica dirigida por aquele.
As alegações de George misturam o falso, o irrelevante e o delirante, como é de resto típico dos trabalhos do autor. Sem querer maçar demasiado os leitores com detalhes abstrusos, informo que não sou membro da Fórum Manifesto. Nada me move contra aquele agrupamento — até tenho amigos que são — mas nunca fiz parte dele. Quanto ao abaixo- assinado que George evoca, fui de facto um — entre centenas — dos seus subscritores, tendo Bebiano depois sido um — entre centenas, por todo o país — dos respectivos candidatos, em lugar ultra-inelegível. Finalmente, a revelação de que eu publiquei uma vez um artigo numa revista electrónica que Bebiano dirigia foi para mim a mais sensacional, porque me remeteu para qualquer coisa vagamente entrevista num canto obscuro da minha própria memória, como num sonho há muito tempo esquecido. De facto, recordo agora, em alguma data que não posso precisar, mas certamente na transição do milénio (entre 1999 e 2001), foi-me pedido um texto para a revista online Non, pedido ao qual fico feliz de saber que terei correspondido. Não recordo nem o conteúdo, nem o título, nem sequer o tema — e, infelizmente, a internet não guarda registo disso. Sei com certeza que, para publicar esse texto, não precisei de me encontrar com Rui Bebiano, a mesma certeza com que posso afirmar que não fui pago pelo artigo.
Finalmente, sobre a ausência de publicações minhas nesta área que justifiquem a atribuição da bolsa, cabe lembrar que o concurso “Escrita pela Democracia” se propõe estimular a produção de trabalhos na categoria de ensaio, e não de investigações académicas, as quais foram objecto de concurso autónomo (“O 25 de Abril e a democracia portuguesa”), promovido conjuntamente pela Comissão das Comemorações e pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Acrescento que a restrição das bolsas do concurso “Escrita e Democracia” à modalidade de ensaio decorre do despacho acima referido, preparado pela DGLAB e pela Comissão para as Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, e corresponde a uma necessidade identificada pela Comissária Maria Inácia Rezola, que se empenhou na abertura de um concurso especificamente dirigido a este tipo de trabalhos.
Parece-me, por isso, que não errei ao interpretar o concurso como um convite à produção de textos num registo mais livre, e foi por esse motivo que, no projecto que submeti, declarei explicitamente que não me propunha escrever um artigo académico, e sim adoptar um tom quase pessoal, que não abdicasse, se necessário, do uso da primeira pessoa. De facto, o meu projecto nasce da circunstância de, nos últimos anos, ter morado, por períodos largos, entre o Brasil, Portugal e a Argentina, e de, nessas circunstâncias, ter tido a oportunidade de assistir à ascensão súbita — de certa forma triunfal — de Jair Bolsonaro, do partido Chega e de Javier Milei. Tal experiência chamou-me a atenção para semelhanças e diferenças no panorama político de cada um desses países, assunto que me pareceu merecer ser desenvolvido um pouco mais a fundo. No âmbito académico — nas disciplinas da história, das humanidades e das ciências sociais —, o método comparativo está hoje muito em voga, enquanto a discussão política e jornalística tende a organizar-se em termos mais paroquiais. Seria minha intenção dar um modesto contributo para tentar mudar isso.
Sobre estas matérias, escrevi até hoje menos do que gostaria, e encarei o concurso da DGLAB justamente como um incentivo a aprofundar o tema. Submeti a proposta, ela agradou, e não creio que deva penitenciar-me por isso. Farei o melhor de que for capaz, e o resultado estará depois, como é natural, sujeito à consulta pública. Faço fé que, desta vez, o espírito policial de João Pedro George possa sentir-se suficientemente espicaçado para o levar a ler, ao contrário do que aconteceu com a minha tese de doutoramento, a que faz no seu texto uma alusão breve e tosca, que revela não ter tido tempo para sequer se deter sobre o abstract, de maneira a poder formar a mais pálida sombra de uma hipótese de uma ideia sobre o tema que a minha dissertação aprofundou.