Ser professor, uma profissão com um grande passado

A degradação cultural, social e salarial desta profissão levaram a que apenas desesperados procurem ser professores.

Mais um novo ano lectivo que começa com velhos problemas que são cada vez mais profundos. A falta de professores é apenas um dos sintomas de algo muito mais grave, o empobrecimento programado do ensino, do significado da educação e da função do professor. No caso da falta de professores há três grandes problemas de fácil identificação. Estes factores não são apenas especificidades da realidade portuguesa, mas em países mais atrasados e pobres no Ocidente, como é o nosso, sobressaem com maior dano para os que mais dependem do ensino público. Não é exagero afirmar que está praticamente tudo errado no ensino actual. Exceptuando o ensino de nicho para quem pode pagar uma educação ainda protegida da erosão a que a escola foi submetida nas últimas décadas e ter assim uma elevada vantagem competitiva, os professores, as famílias e os alunos estão à mercê de um trabalho de destruição, do qual, aliás, são cúmplices.

Os três problemas principais do desmoronamento do ensino, que têm como uma das consequências a desvalorização da profissão de professor e o afastamento de pessoas com qualidade profissional para o ensino, são os seguintes:

— O triunfo das pedagogias progressistas, o que Guilherme Valente, entre outros, designaram como o “eduquês”, a pedagogia romântica construtivista radical, típica das ditas “ciências” da educação que a OCDE legitima através da invenção de indicadores de sucesso estatístico.

— A burocratização da profissão, ou seja, a destruição do significado de ensinar, reduzindo o ensino apenas a mais uma tarefa, entre outras. O preenchimento anual de centenas de formulários e inserção de dados em plataformas, inúteis e redundantes e a promoção de meia dúzia de actividades banais ocupa o tempo do professor, desvalorizando o fundamental, a preparação de boas aulas e a melhoria do desempenho profissional.

— A proletarização do professor, o empobrecimento económico significativo da carreira docente e o desprestígio dessa função. Sucessivos governos, como os de José Sócrates, António Costa e Pedro Passos Coelho, por exemplo, pauperizaram a profissão, promoveram a divisão entre o sector privado e público, enfatizando que os professores, particularmente os portugueses tinham elevados salários e pouco trabalhavam, confundido intencionalmente o salário líquido e ilíquido. As tabelas de vencimentos não foram actualizadas, pelo contrário os salários foram até congelados e houve um empobrecimento brutal considerando as qualificações desses profissionais e o aumento do custo de vida e da inflação. Um professor com mais de 20 anos de trabalho não recebe mais que 1400 euros líquidos, ou seja, o equivalente a pouco mais que um ordenado mínimo e meio.

A degradação cultural, social e salarial desta profissão levaram a que apenas desesperados procurem ser professores.

O primeiro dos problemas identificados gerou a destruição do significado de ensinar efectuado por essa visão deformadora do que é a importância do trabalho, do esforço, do sacrifício e do mérito e transformou o professor numa espécie de animador recreativo.

A ideologia progressista é animada por falsos pressupostos sobre o que é ensinar e sobre o significado da igualização, factores estes, desmotivadores de um trabalho sério e proveitoso. O resultado é visível, a escola dita democrática só excepcionalmente funciona como um elevador social e tem, sim, contribuindo para a manutenção e até aprofundamento de crescentes desigualdades sociais e económicas entre pessoas, neste caso, os alunos. 

Um bom professor, exigente consigo e com os alunos não serve para este modelo progressista, mas também liberal económico. A ideia triunfante do que deve ser um aluno, um ignorante não contrariado para não se sentir frustrado, liberto do fardo do trabalho, onde a irresponsabilidade e a infantilização se confundem com a preservação da liberdade e especificidade de cada um, funde-se com o pragmatismo liberal de lançar o mais rapidamente possível no mercado do trabalho e do consumo, sucessivas gerações com o menor dispêndio e exigência. Assim garante-se mão de obra barata e pessoas mais desprotegidas e fáceis de manipular e controlar. Os trabalhos bem remunerados exigem gente altamente especializada e capacitada, temperados em escolas exigentes e implacáveis com o desempenho escolar e o comportamento.

O progressismo aplicado ao ensino comunga a crença no bom selvagem, o homem é naturalmente bom, são as exigências das sociedades que nos tornam maus, a escola deve então reproduzir em parte o regresso a esse estado natural, em que cada um é entregue aos seus desejos. Devemos também promover o igualitarismo artificial, aqueles que nada fazem ou que muito fazem têm o mesmo valor, todos os alunos são iguais. O bom professor, um bom mestre vale o mesmo ou menos que o professor que desenvolve muitas actividades lúdicas e inovações e está bem adestrado no eduquês.

A avaliação dos conhecimentos como a autoridade dos professores passaram a ser entendidas tendencialmente como expressões repressivas, injustas e traumatizantes a erradicar. Esta atmosfera foi letal para a perda de autoridade do professor e de um tipo de relação que nunca pode ser igual, pois quem ensina não está no mesmo plano de quem aprende (não confundir com autoritarismo). O professor hoje é apenas um parceiro emocional, quer no acto de ensinar, quer no de avaliar. Uma correcção, uma advertência, uma classificação negativa são entendidas como castigos e punições inaceitáveis, pois tudo faz parte do seu desenvolvimento do ser humano. Os melhores alunos não devem ser muito enaltecidos, pois isso gerará desigualdade.

O predomínio dessas teses do miserabilismo da nova sociologia atribuem também o mau desempenho escolar do aluno a factores exteriores que a escola deve compensar e qualquer dificuldade muitas vezes corresponde a uma plêiade de novas doenças cognitivas e psicológicas.

Destaque-se, e esta é de facto uma obrigação crucial, que na escola pública nenhum aluno deve ficar para trás, e todos têm direito a percursos e respostas adequadas. Mas é necessário realismo, as pessoas não são todas iguais, são diferentes e não se deve fingir a criação de falsas expectativas que apenas asseguram fracassos e frustrações futuras. Esta atmosfera delirante, espécie de parque de estacionamento e de diversão para jovens, transformou a escola numa fantasia burlesca sem qualquer correspondência com aquilo que cada jovem encontrará depois na sua vida profissional e as dificuldades que tem de enfrentar no “mundo real”.

As teses do aprender a aprender, ser a ser, da educação como experiência sensorial e emocional, despedaçaram a missão principal do professor que é o de conduzir o aluno de um estado de ignorância para um estado de conhecimento, onde a avaliação é fundamental e o esforço e o trabalho devem ser premiados. Imagine-se o papel de um treinador que só tem de ter os jogadores felizes e estes só treinam o que lhes apetece e ainda assim todos jogarão em cada jornada.

As crianças e os adolescentes são vistos pelos gurus pedagogos quase como vítimas ignorantes e tontas que têm de ser seduzidas e convencidas para a aprendizagem e para o trabalho. Matérias e conteúdos complexos são reduzidos a deformados a simplificações risíveis. Os conteúdos do vídeo de um qualquer tiktoker valem tanto com uma obra de Eça de Queirós.

A ideia que o professor deve suportar todo o tipo de indisciplina e falta de educação como uma nova normalidade é em parte responsável pelo caos em que se transformam muitas aulas. A não responsabilização dos pais pela educação dos seus filhos, transferida em alguns casos para a escola, é um dos erros inaceitáveis deste sistema. Os professores ensinam, os pais educam, e sem educação, o ensino dificulta-se.

As Ciências da Educação e as ditas pedagogias foram as principais responsáveis por este trabalho de devastação do papel do professor e do ensino. Claro que os experimentalismos anti-realidade de iluminados nas suas torres de marfim são apresentadas como dogmas que não podem ser questionados.

O progressismo aplicado à educação não se pode questionar e serve outra concepção mais poderosa, a da mundividência liberal económica, veja-se o caso do Processo de Bolonha, que mais não é que o desinvestimento na formação do aluno para que este entre o mais rapidamente no mercado da produção e do consumo. A quantidade de alunos com licenciaturas e mestrados condenados a trabalhar em caixas de supermercados (enquanto esta profissão ainda existe) e a trabalhos precários é assustadora.

 Podíamos ainda, mas esse é outro tema, abordar o que aconteceu aos programas e conteúdos de cada disciplina, em alguns casos contaminados por um tipo de doutrinação ideológica que nada tem a ver com o conhecimento e o saber, como já acontece até no ensino universitário em muitas áreas.

Sobre o segundo problema, o trabalho do bom professor consiste exclusivamente em ensinar e em preparar-se para exercer essa profissão do melhor modo possível. O professor deve obviamente dar provas e responder pelo valor do seu trabalho e é responsável pelo seu desempenho e também pelo sucesso dos alunos. O professor deve ter tempo para se actualizar e preparar a suas aulas e esse devia ser o seu único trabalho. Mas o que sucedeu ao longo das últimas décadas foi a transformação do professor num misto de animador e couch e a sua reconversão em funcionário ocupado em tarefas administrativas e burocráticas.

Um docente passa horas e horas a preencher de milhares de fichas e relatórios que ninguém lê, em centenas de reuniões redundantes e a debater a sobredose legislativa sobre educação que cada governo reinventa, pois cada nova equipa ministerial acrescente dezenas de alterações legislativas que se acumulam, constituindo uma manta de retalhos de legislações, exigências e procedimentos kafkianos. As dezenas de siglas utilizadas nas escolas, como as RAD, DACL, TELEBS, PLA, PFOL, PASEO, para não falar da cornucópia de metas, descritores, competências, aprendizagens iniciais, etc., deixam atordoado o mais empedernido burocrata fora do ambiente escolar.

A incompreensível avalanche de trabalho burocrático que foi aumentando com o tempo é de modo deliberado ou não, imposto para quebrar o elevado significado do que é ser professor. O melhor modo de diminuir alguém profissionalmente é atribuir-lhe tarefas que nada têm a ver com a sua profissão.

Hoje aquele que é considerado um bom professor pode ser apenas o melhor burocrata e não aquele que mais trabalha e com mais qualidade no exercício do ensino e da verdadeira capacitação dos seus alunos. Aliás, um professor exigente poderá muito bem ter problemas muito sérios. O rigor e a exigência são penalizadores perante algum colega que mostra destreza como animador sociocultural a reproduzir os experimentos escolares produzidos por PS e PSD.

As direcções das escolas foram também severamente atingidas, as suas equipas de trabalho são cada vez menores e viram aumentar o universo das suas tarefas e praticamente vivem nas escolas atulhados em todos os problemas e mais alguns, a troca de um conforto monetário residual.

O terceiro problema, o mais evidente e imediato, tem a ver com o empobrecimento crescente desta actividade. Ser professor é uma profissão especializada e exigente, mas mal paga e que foi intencionalmente desprestigiada para justificar essa baixa remuneração, o que conduziu a uma acelerada perda de atractividade. Um professor sem casa própria trabalhará para pagar residência e alimentação e pouco mais.

Muitos professores consideram que são, mesmo que de modo involuntário e por passividade, cúmplices da destruição do sentido mais nobre da sua profissão.