Veículos elétricos. Desafios e benefícios da mobilidade dita sustentável

Os veículos elétricos têm pontos positivos e negativos. Para compreendê-los, falámos com uma utilizadora e três professores universitários.

Têm sido muitas as controvérsias relacionadas com os veículos elétricos (VE). Em agosto, um grande incêndio em armazéns na zona do Prior Velho, numa empresa de estacionamento que presta suporte ao aeroporto, foi destaque nos meios de comunicação. Inicialmente, acreditava-se que o incêndio teria começado num VE, mas novas informações indicam que o fogo teve origem num veículo a combustão. No entanto, a 1 de agosto, em Seul (Coreia do Sul), um carro elétrico incendiou-se num estacionamento subterrâneo e destruiu cerca de 140 veículos. O incêndio levou oito horas para ser controlado.

Segundo um relatório de 2022 pela UE, intitulado de Myths and Facts about Fires in Battery Electric Vehicles, “algumas estatísticas internacionais estimam que existam atualmente cerca de cinco incêndios por cada 1,6 mil milhões de quilómetros percorridos por carros elétricos, em comparação com 55 incêndios por carros com motor a combustão, na mesma quilometragem”.

Mariana Cruz decidiu optar pela compra de um VE e não está totalmente satisfeita. “A autonomia dos veículos elétricos ainda pode ser um problema, especialmente em viagens longas. Mesmo com a evolução das baterias, é preciso planear paragens para recarregar”, explica, adiantando que “embora a rede de postos de carregamento esteja a crescer, ainda é limitada em certas áreas”. E alerta: “Carregar um VE leva mais tempo do que abastecer um carro a combustão. Dependendo do tipo de carregador, pode demorar várias horas para uma carga completa”, lamenta a utilizadora, não esquecendo o preço de compra dos VE. “Ainda é mais alto em comparação com modelos tradicionais, apesar dos benefícios a longo prazo com economia de combustível”, diz, acrescentando que as baterias dos carros elétricos podem ter “um desempenho inferior em climas muito frios ou quentes, afetando a autonomia”.

Além destes fatores, Mariana evidencia a “durabilidade das baterias e a possibilidade de altos custos de substituição, além da incerteza sobre a desvalorização dos veículos no mercado de usados”. “Não sei se hoje tomaria a mesma decisão. Penso que me deixei levar pela moda e pelos inúmeros benefícios que li em artigos. Sinceramente, há dias em que me sinto muito arrependida”, sublinha.

Sérgio Lopes é coordenador do mestrado em Eletrónica e Eletrificação Automóvel, do Instituto Politécnico de Viana do Castelo. Destaca a proximidade de uma das maiores fábricas automóveis da Europa, em Vigo, que teve um papel crucial no desenvolvimento do setor na região. Menciona que “a proximidade do Alto Minho a esta grande fábrica fez com que, nos últimos 20 anos, se fixasse um número considerável de empresas que desenvolvem atividades no setor automóvel” e como essa transição elétrica acelerou nos últimos cinco anos.

O docente universitário frisa o impacto da rápida transição para a eletrificação na indústria, sublinhando que as empresas têm de se adaptar rapidamente, muitas das vezes com engenheiros mecânicos que haviam sido formados no paradigma dos veículos a combustão. Tal gerou um “gap” de competências, pois “grande parte dos quadros viram-se em processos de produção de componentes para carros elétricos”, o que impulsionou a criação do mestrado.

Acerca do ciclo de estudos que dirige, o coordenador explica que este foi desenvolvido em resposta a uma necessidade das empresas da região e é de cariz profissional, focado em engenheiros com mais de cinco anos de experiência no setor. O curso visa capacitar os alunos para as tecnologias emergentes, como as baterias de lítio e as fuel cells, e também trata do armazenamento de energia, algo crucial para o futuro da mobilidade elétrica.

Ao ser questionado sobre as controvérsias relacionadas com os VE, como o risco de incêndio em baterias, afirma que “a tecnologia tende sempre a ter uma melhoria contínua”, explicando que os problemas que surgem são resolvidos à medida que a maturidade tecnológica aumenta. Salienta que, apesar dos desafios, a mobilidade elétrica está em plena expansão e o mestrado pretende preparar profissionais para liderar essa transformação.

Considera que “há condições que provocam explosão e fogo” nas baterias, mas reitera que essas situações são passíveis de mitigação através de avanços tecnológicos. Em cinco anos, acredita que o risco de incêndios será menor, pois os “sistemas de armazenamento evoluirão significativamente”. Argumenta que a transição para a mobilidade elétrica é “inevitável e irreversível”. Embora existam oscilações nas vendas de carros elétricos e híbridos, defende que o avanço da tecnologia e a produção de energia limpa, como o “hidrogénio verde”, fortalecerão a adoção dessas soluções.

Destaca o papel das organizações portuguesas, como o Cluster Automóvel, representado pela Mobinov e a AFIA (Associação de Fabricantes para a Indústria Automóvel), na promoção dessa transição tecnológica. Essas entidades são, segundo ele, as “forças motoras que agregam valor nas cadeias de produção automóvel”.

Reclamações disparam… mas, e o futuro?

Quem vai ao encontro da perspetiva de Sérgio Lopes é Safak Yucel, Professor Associado e Diretor Associado da Business of Sustainability Initiative, na Universidade Georgetown, em Washington, nos EUA. “Embora o processo de fabrico possa ser mais intensivo em emissões para os VE, as emissões globais do seu ciclo de vida são inferiores às dos veículos movidos a gasolina”, diz, avançando que “a atual adoção destes veículos não é tão elevada que provoque perturbações massivas na rede elétrica existente”. “Dito isto, quando há uma maior adoção de VE, utilizá-los para carregar e descarregar eletricidade (quando necessário do ponto de vista da rede) pode ser útil para manter o equilíbrio entre a procura e a oferta na rede. Depois, a questão principal é conceber políticas de preços para carga/descarga de VE, de modo a incentivar a participação dos mesmos nos serviços da rede”.

“Estes veículos podem fazer parte da economia circular se as baterias e outras peças dos veículos puderem ser recicladas e reutilizadas. No entanto, esse parece ser um objetivo distante”, constata o professor universitário, sublinhando que “qualquer subsídio para VE pode ser útil”, sendo que estes “são ambientalmente mais benéficos do que os veículos convencionais” e, “como tal, aumentar a sua adoção é benéfico para o ambiente”.

“A maior barreira são os desafios associados ao carregamento. Principalmente, a falta de infraestrutura de carregamento”, enfatiza, declarando:_“Acho que a questão principal é carregar os veículos de forma inteligente para aliviar o custo da eletricidade”. “Os veículos elétricos são muito melhores que os veículos convencionais. No entanto, o transporte público é melhor do que qualquer um deles”, afirma convictamente.

Segundo dados do Portal da Queixa, avançados ao i, as reclamações relacionadas com veículos elétricos aumentaram 27,2% desde o ano passado. Já as estações de carregamento obtiveram um aumento, em termos de reclamações, de 90.9% se olharmos para o valor de 2023. O aumento total encontrado de queixas foi de 45.7%. O principal problema relatado é o da bateria (18,5%), mas seguem-se a garantia (16,7%), as falhas na conclusão das reparações (11,1%), a dificuldade em encontrar peças de substituição (7,4%) e, por fim, a dificuldade em contactar as marcas (5,6%).

Naquilo que diz respeito às estações de carregamento, as principais queixas prendem-se com cobrança indevida (30,6%), publicidade enganosa (24,2%), postos avariados (17,7%), cabos presos após o carregamento (12,9%) e apoio ao cliente (4,8%).

A seu lado, Luís Miranda Torres, diretor da licenciatura em Engenharia Mecânica Automóvel do Instituto Superior de Engenharia do Porto, não esquece que os veículos elétricos constituem uma solução eficiente para trajetos citadinos, devido à sua maior eficiência energética, menor ruído e condução simplificada. Porém, defende que o tema deve ser abordado de forma holística, considerando tecnologia, ambiente e utilizador.

“Os veículos elétricos apresentam um sistema propulsor com uma eficiência energética muito superior à dos veículos com motor de combustão interna”, sem emissões de escape e com menor ruído. No entanto, a autonomia das baterias, o acesso a postos de carregamento e o tempo de carregamento continuam a ser limitações. Além disso, a longevidade das baterias é uma preocupação: “os carregamentos rápidos, se efetuados com frequência, encurtam a vida útil de uma bateria”, diz.

Ambientalmente, o impacto dos VE vai além da utilização. É importante analisar “todo o ciclo de vida de um carro elétrico”, que inclui uma pegada ambiental mais elevada na produção, devido às baterias. O professor universitário ressalta que os ganhos ambientais dos veículos só são significativos se “a energia elétrica provier de fontes limpas”. Ainda salienta a reciclagem como um desafio, destacando que “quanto maior for a capacidade [da bateria], maior é o problema”.

Do ponto de vista do utilizador, expressa preocupações com o aumento do parque automóvel e a baixa taxa de ocupação dos veículos: “cada utilizador/família deve ter a preocupação de adotar formas de mobilidade mais eficientes ambientalmente”, declara. Sobre a eletrificação em massa, diz que há benefícios como a redução do ruído e ausência de emissões locais, mas a eletrificação também apresenta desafios como a reciclagem das baterias e a necessidade de produzir energia limpa. Defende que “a eletrificação deve ser um processo gradual” e que os desafios da mobilidade não se resolvem apenas com estes veículos, sendo um erro pensar assim.

Quanto às dificuldades técnicas, o foco está no desenvolvimento de baterias mais leves, eficientes e recicláveis. Também comenta os incêndios verificados, explicando que “a grande diferença está na dificuldade em extinguir o incêndio de um veículo elétrico”, em comparação com veículos tradicionais.

Por todos estes motivos, no curso que coordena, os estudantes são preparados para os desafios do mercado de trabalho, com ligações estreitas a empresas do setor automóvel, permitindo “antecipar e preparar melhor os estudantes”.