O blockbuster do ano – Harris and Donald

Queremos compreender as eleições nos EUA ou apenas assimilar e reproduzir um conjunto de preconceitos unilaterais e dogmáticos?

Passam as imagens de vários cartazes de uma manifestação anti-Trump,  “Trump não tem cão”, enuncia o carta, “Antes Marx, que Trump” diz-nos outro.

Houve uma segunda tentativa para assinar este candidato e a TVI/ CNN apresenta o criminoso do seguinte modo: «Um pai amoroso, honesto e trabalhador». Lembra-me o argumento da mini-saia, “ela estava a pedi-las”. Uns dias antes após o debate entre os candidatos, uma jornalista nesse canal português, sobre quem venceu, dá-nos a conhecer a seguinte sondagem, Trump tem 37% e Kamala obtém 73%, portanto, uma vitória tal que derrota até possibilidades matemáticas.

Uma grande parte dos média, certamente por questões económicas e ideológicas, já não nos apresentam os acontecimentos na sua factualidade e objetividade mínimas, nem há verdadeira pluralidade de análises sobre o que é mostrado. O que nos chega pelas televisões é uma ficção narrativa repetida até à exaustão e que deve ser assimilada pelo espetador como a única visão, não só possível, como admissível sobre real. Libertam-nos do fardo de pensar, e isso é degradante. Mas importa pensar, neste caso, sobre o que, na verdade, são Trump e Kamala. Estes surgem invariavelmente como estrelas, personagens da ficção norte-americana, dos quais apenas conhecemos os seus desempenhos no grande espetáculo controlado para consumo das massas.

A ideologia triunfante e mais significativa do século XX não foi o comunismo, nem o fascismo ou o nazismo, mas o americanismo. Este confunde-se com o que significa o novo liberalismo, quer o liberalismo económico, quer o liberalismo progressista. O novo capitalismo e liberalismo, assim como o globalismo, foram durante décadas capítulos da política externa dos EUA. No século XXI, os EUA ainda são a potência mundial número um, mas houve uma autonomização dentro dessa potência que se constituiu como um poder transnacional com as respetivas oligarquias.

O americanismo pelo seu poder inédito transformou-se uma força brutal de aniquilação da cultura ocidental, seja pela desregulação económica que gerou, seja pelo desenraizamento que a sua visão progressista impôs. No campo do progressismo, a grande teoria que engoliu a esquerda e a deformou como teoria pós-moderna, a ideia que somos todos racistas, a teoria do género, etc. são criações americanas. Mas sejamos justos, se o pior do planeta em vários planos, económico, ético, social e político é americano, também é nesse país que encontramos muito do melhor no plano do conhecimento e da tecnologia.

Os EUA assumiram, principalmente após o fim da II guerra mundial, um papel hegemónico programado a nível planetário. O mundo seria idealmente um conjunto de colónias norte-americanas e o principal entreposto seria a Europa, particularmente a U.E., uma espécie de franchising americano. O capitão América salvara o mundo dos nazis, e por fim, derrotara o arqui-inimigo, o comunismo. Narrativas simplórias, heróis e vilões estereotipados fazem parte do imaginário pueril, mas pragmático do americanismo.

 Os EUA são principalmente uma ideia totalitária do que o mundo deve ser no plano económico e ideológico. A sua cultura é um amontoado confuso de ideias milenaristas, de cópias e simulacros de ideias ocidentais mal compreendidas, de conceções infantis de divertimento suportadas por uma capacidade tecnológica e produtiva que ainda é dominante no plano global. A organização e funcionamento do mercado, da banca, das grandes empresas são criações americanas. A cultura americana, salvo honrosas excepções é negócio e divertimento, ou seja, vivemos uma pós-cultura. No seu desenvolvimento, o americanismo acabou por gerar forças que o superaram, a escala de produção e consumo engendrada pela indústria de guerra até 1945 foi transposta para o modo de vida civil e alterou completamente as sociedades. Um poder transnacional, como as mãos bem visíveis dos mercados, da banca e das grandes empresas à escala planetária, principalmente as tecnológicas, criaram um poder concentracionário acima das soberanias nacionais, inclusive da norte-americana. Esse poder de elites específicas não é algo oculto e sinistro, é bem visível e percebe-se de modo claro como funciona e o que pretende, embora seja hegemónico e implacável. Quem recusar esse modelo no plano económico e societal é imediatamente destruído.

Os EUA são um país jovem e até infantil, mas no seu passado houve uma importante tradição de debate e práticas genuinamente democráticas, mas durante o século XX transformou-se no grande estúdio da fabricação da superprodução histórica mundial do que é a realidade e dos seus principais espetáculos. Assim chegamos às atuais eleições norte-americanas. A cada capítulo da produção americana a grande encenação destrói qualquer vestígio da realidade. A grande encenação mercantil e ideológica deve gerar nos crédulos espetadores consumidores a indistinção total entre a realidade e a simulação. A ficção é agora a realidade, na grande sala do cinema Mundo. A política real desapareceu é apenas uma arte cénica. Devemos perguntar onde está o verdadeiro poder nas sociedades ditas democráticas?

 Quando se debate a importância de youtubers e influencers em campanhas, ou um produto musical para consumo de adolescentes como o caso de Taylor Swift, é apontado com uma peça decisiva da campanha, assim como o efeito de uma frase ou sorriso, estamos em que nível de uma idiotização mental coletiva?

 Harris e Donald são principalmente personagens de alguns episódios da série mais visionada da atualidade. A personagem Donald ressurge nos episódios desta temporada já com notório desgaste. Esta temporada tem algumas das cenas mais pérfidas já presenciadas neste tipo de comédia dramática, o atual presidente, Joe Biden, foi vítima de algo incomum, arredado do poder contra a sua vontade, portanto, vítima de um golpe partidário interno, sugerindo-se a sua incapacidade mental e senilidade. Houve, sem dúvida, um golpe de Estado, pois a sua credibilidade foi destruída ainda como presidente do país. Dois dias antes de ser obrigado a anunciar que não se recandidata a um novo mandado, afirmava sorridente e convicto que a sua candidatura era certa e que não estava senil. Esse golpe interno, deu lugar a outro, a escolha do representante do partido democrata para as próximas eleições foi feita, na verdade, por aclamação. Joe Shapiro, por exemplo, pretendido para vice-presidente, recusou, não quis vender a sua dignidade, pois pretendia de facto ir a votos no congresso para a escolha do futuro candidato. Mas as alterações da estrutura do próprio guião numa grande produção não são comuns.

A invasão do capitólio após a derrota de Trump, algo do domínio do insano, em que este aparece próximo do local num palanque emulando uma espécie do rival de Batman, o Pinguim, sendo muito grave, não tem uma gravidade superior, considerando as consequências, deste golpe interno e de Estado. O absurdo das razões alegadas por esse golpe de Estado demonstra-se de modo óbvio, se o presidente da maior potência nuclear, económica e ideológica estivesses senil continuaria mais seis meses no cargo?

A personagem Kamala em episódios anteriores era considerada de modo unânime como alguém com fracas possibilidades de chegar a candidata presidencial, pois era limitada e apagada, mas os guionistas alteraram a sua caracterização. Kamala na reescrita do guião, reaparece como uma grande novidade e alternativa e Trump reencarna de novo o papel do regresso do vilão, algo que desempenha de modo muito convincente. Estamos, importa recordar, perante entretenimento de duvidosa qualidade.

Kamala é agora apresentada como uma alternativa completamente nova até a si própria. A personagem Trump é curiosa, sem uma grande degradação do género comédia dramática democrática, nunca surgia este tipo de figura com tal estatuto. Esta personagem não é uma causa, mas um efeito, uma consequência do trabalho devastador, precisamente dos democratas que destruíram a democracia e que necessitam de bodes expiatórios para projetarem as suas exclusivas responsabilidades num outro. Maus guionistas só conseguem produzir histórias e personagens menores.

Numa democracia a sério, com cidadãos verdadeiramente capazes de pensamento autónomo, exigente e participativos na vida da sua nação e do seu país, não haveria lugar para um Trump, mas muito menos para uma Kamala, se bem que ambos são atores e personagens unidimensionais. E vejamos como o cidadão, desculpem, o espetador, deve assimilar a narrativa incontestada, simplória e maniqueísta, Trump, o supremo mal, o ogre abjeto e Kamala o supremo bem, a esperança, o futuro, a liberdade e a democracia. Mas estas personagens apenas iludem espetadores pouco exigentes.

Por exemplo, qual foi o maior legado de Obama? O Messias que resgataria a esperança perdida da humanidade e transformaria radicalmente o mundo. A invenção de Trump. Obama foi também um grande um golpe publicitário para introduzir uma nova ‘nuance’ no guião. Mas o vilão tem sempre um interesse maior.

 Trump é uma novidade que abre novas portas, o surgir de candidatos e presidentes pós-modernos. Este ator trata as massas consumistas do século XXI como os idiotas básicos que nem todos são e diz muitas vezes o óbvio, o que no deserto do real não é considerado aceitável. As suas mensagens são simplistas e elementares, mas o seu eleitorado, até pela quantidade, não é propriamente um exército de degenerados estúpidos. O que acrescenta um grau de gravidade inédito. Pois, que desilusão, abandono e frustração são necessários para existir este tipo de oposição como uma última esperança? Já Kamala e Waltz são um par estranho, nas suas atuações para televisão, se tirarmos o som das imagens, parecem uma dupla cómica burlesca de patetas sempre a rir e a gesticular muito.

Foi David Ernst, no The Federalist (23/01/2017) a destacar a ideia de Donald Trump como o primeiro presidente pós-moderno, o que tornou este incompreensível para os seus adversários, as elites e clãs do sistema, da política aos média. O candidato a presidente utiliza as regras pós-modernas: a superficialidade, a manipulação, o relativismo, a subjetividade, o fim da verdade e o triunfo das pequenas narrativas, a ideia que tudo é uma construção. Trata-se de alguém que domina o uso de todos os signos da sociedade do espetáculo mundo ocidental pós-moderno, e parece afirmar: “eu faço parte da grande porcaria em que se transformou o Ocidente, e sendo porcaria quero ser uma porcaria menos má e usar esse conhecimento para gerir a própria porcaria”.

Ernst refere uma cena do filme Scarface com Al Pacino e Michelle Pfeiffer que contém a chave para se perceber Trump. A personagem principal, Tony Montana, um anti-herói, é, num dos momentos mais significativos da fita, exposto pela mulher num dos clubes mais exclusivos de Miami, que lhe grita em voz alta que ele é um criminoso, um traficante e um pai fracassado. E sim, é, é um traste, uma criatura amoral, mas Montana, vira-se para aqueles que olham para ele, e esse público está repleto de pessoas ditas respeitáveis, ricas, civilizadas e democráticas, e grita-lhes que também eles, são todos uns crápulas, falsos e hipócritas e sem coragem para serem aquilo que são e precisam de pessoas como ele para culpar, e dizer: – o mau é aquele.

O guião dogmático do liberalismo económico globalista e o progressismo do simulacro dos valores encontrou em Trump o personagem ideal para representar o vilão, mas esta personagem excedeu as expectativas, pois é também, o nosso reflexo no espelho, como a imagem que Dorian Gray via. Afinal, não é também o psicopata Bates de American Psycho algo específico deste tempo? Trump e Kamala são falsificações da realidade, mas Kamala é a degradação máxima da falsificação e da manipulação, porque é muito mais enganadora que esse remake de um execrável e fascinante Bates envelhecido.

Kamala não vai salvar o mundo, e levar os desvalidos para o paraíso, como Trump não vai mergulhar o planeta nas trevas mais profundas do aquecimento global, da homofobia, na perseguição aos migrantes e na aniquilação da democracia. Eles são apenas personagens de uma sórdida peça de ‘vaudeville’ pós-moderno, em diretoe para as televisões, onde desfilam os mais diversos trapezistas, comentadores, acrobatas, políticos, celebridades como estrelas de cinema e músicos, cómicos e até alguns homens comuns. Sim, eles são caricaturas da pós-verdade e das fake news que são a substância da manipulação televisiva do presente.