Saiu recentemente uma sondagem em que Gouveia e Melo surgia em primeiro lugar se as eleições para presidência da República se realizassem por estes dias. Os restantes candidatos com menos intenções de voto são figuras importantes dos partidos políticos, como o caso de Passos Coelho, Marques Mendes, Augusto Santos Silva e Mário Centeno. A realidade é que somente numa situação extraordinário um candidato que não surja da máquina partidária tem hipóteses de vencer, tal o controlo partidário daquilo que cada vez mais, apenas por hábito, se designa por democracia.
Gouveia e Melo será cilindrado pelas máquinas dos partidos políticos como já começou a acontecer. Será reduzido a um sem número de defeitos. Recordo-me do que aconteceu, por exemplo, a Fernando Nobre durante e após a sua candidatura em que parecia ser uma figura consensual e foi submetido a um autêntico assassinato de carácter por parte do sistema partidário.
As dificuldades que enfrentam os movimentos de cidadãos em eleições autárquicas, as únicas onde são admissíveis esses movimentos, pois os partidos políticos donos da democracia, e a verdadeira democracia não tem donos, não autoriza grupos independentes de cidadãos (para presidente da república é possível, pois trata-se de uma eleição uninominal) a concorrer a eleições nacionais com medo de perderem o controlo do seu poder são apenas um dos sintomas do mal da partidarização do ideal democrático.
A filósofa Simone Weil no opúsculo Notas sobre a Supressão Geral dos Partidos coloca uma questão fundamental sobre o âmago da própria democracia, o da inutilidade dos partidos políticos. Estes são, na verdade, um impedimento à verdadeira política e democracia e um sintoma grave da degradação do significado desses conceitos. Os partidos não fazem nenhuma falta, são um mal a que nos habituamos e são uma espécie de sequestro legalizado de tudo o que é o essencial da democracia. O político de partido em pouco se distingue de um membro de um clã e de uma seita, em que o bem do seu grupo e/ou família está acima de tudo. Já alguém viu um partidocrata criticar o seu partido e defender outro partido? Nunca ou raramente, porque o espírito de clã não é compatível com a defesa e a aplicação das melhores ideias numa comunidade, se estas não forem principalmente vantajosas para um determinado grupo, o seu, o do partido. Recordemos que o clã é das formas mais primitivas de organização social. O político do partido na prática age como aquele intermédio inútil num negócio entre duas partes, mas que surge como uma necessidade inexistente, em que apenas este lucra, e a partes perdem muito mais que aquilo que ganham.
A democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo, o que significa que a principal missão política é sempre a do povo estar preparado para governar e para ser governado. A partidocracia criou uma falsa necessidade, a dessa intermediação que se impôs como um dogma. Devíamos aceitar essa intermediação apenas pontualmente e pelo espaço de tempo necessário. Um dos principais objectivos dos partidos políticos em democracia consiste precisamente em criar as condições para um tipo de maioridade do cidadão onde esses partidos se tornam desnecessários.
Na partidocracia, o partido, salvo a retórica altruísta do interesse do país e das pessoas, é sempre prioritário e os militantes e os seus interesses estão primeiro que os cidadãos. A partidocracia acaba sempre por criar uma casta de privilegiados. A sucessão por laços familiares é um dos exemplos dessa metamorfose do partido em casta. Esses políticos, criaram até o profissional da politica, aquele que percorre ao longo de décadas vários cargos, seja, deputado, ministro e secretário de Estado das mais diversas áreas, ou com diversos cargos políticos e públicos, precisamente porque pertence ao partido. O argumento que se perde dinheiro na política, é falso, qualquer cidadão anónimo ao fazer carreira no partido ou numa juventude partidária terá cargos até no sector privado com os quais nunca sonharia na sua vida anónima. O político comentador é outra declinação desse poder mágico que adquire o membro de um partido.
Quando os mesmos indivíduos exercem de modo continuo o poder durante 30 ou mais anos num país ou numa localidade ainda estamos num regime democrático? Em Portugal a maior parte dos políticos nunca ou pouco trabalharam fora da atividade política. A política em democracias reais não pode ser uma profissão. Que preparação tem alguém que foi unicamente político? Ora, a política não é uma profissão, mas um direito e um dever de cada cidadão em relação à prestação de um serviço cívico e público durante um determinado espaço de tempo limitado no seu país, região ou localidade. Esse serviço tem sempre como prioridade o bem público e os interesses da comunidade, mais que o interesse próprio ou de um grupo, neste caso partidário.
Se eu sou um político profissional, tenho que colocar a minha entidade patronal acima de tudo. A perpetuação dos interesses do partido e dos seus filiados é superior ao interesse do país e da comunidade. E o que dizer da democraticidade de um sistema quando no decorrer de décadas apenas duas formações idênticas no essencial, sempre com os mesmos nomes, se reveza no poder, destruindo a validade de qualquer alternativa?
Na verdade, os partidos são um mal da democracia e a sua influência na sociedade dá-nos o grau da patologia que afecta esse sistema politico. É certo que esse grau é diverso, mas a existência de partidos não devia ser inquestionável.
A existência de partidos implica que o bem principal que persegue é o do seu sucesso e da perpetuação no poder. Podem ser bem-intencionados e acreditarem que têm a chave para uma vida melhor de uma comunidade e/ou sociedade, mas é sempre o seu interesse próprio e de grupo que é prioritário, e este claro, pode até coincidir com o bem comum, mas as pessoas e a sociedade são meias para o seu fim, o sucesso de uma família (politica).
Nas menos imperfeitas formulações práticas da democracia e da república não existiam partidos oficiais como os conhecemos atualmente e as suas oligarquias eram mais democráticas.
Na Grécia Antiga, nas cidades-estado onde nasceu a democracia, sabemos que as mulheres e os escravos não votavam, algo que é inaceitável, e bem, para o mundo contemporâneo, mas o grau de atividade e participação política daqueles que eram considerados cidadãos, torna ridícula a ideia de democracia atual. Todo o cidadão, por exemplo, de Atenas, durante a sua vida, acabaria por exercer um cargo político, e a sua participação na vida pública era praticamente obrigatória, até por dever pessoal, e não por qualquer imposição exterior. O mesmo sucedia nas práticas republicanas da antiga Roma. Se comparamos esses 30% de atenienses que participavam ativamente na vida e na gestão da sua cidade, com o grau praticamente nulo de participação e intervenção do cidadão atual, a democracia grega não era apenas formal como sucede na actualidade, exceptuando a rotatividade entre as oligarquias políticas dos países. Os cidadãos que eram chamados a prestar o seu dever cívico, participar no governo da cidade, se não tivessem posses, veriam até estas garantidas pela cidade.
Ora, ser cidadão significa de facto fazer parte, pertencer à cidade, ser uma das células dessa unidade viva. Nas sociedades humanas existirão sempre naturalmente grupos e interesses, mas a ideia de que esses grupos se tornam os donos do poder impondo eles as regras de legitimação de acesso ao mesmo é uma perversão inaceitável do conceito de democracia. A escala de Atenas nada tem a ver com uma nação, por exemplo, europeia, mas podíamos transferir essas práticas para o nível local e regional, e até nacional. Aliás, provavelmente a democracia para ser real só funciona numa escala dessa dimensão. Atualmente o predomínio no Ocidente de um poder transnacional e de uma governança global são a negação de qualquer democracia de facto.
O livro citado de Simone Weil é um admirável desafio, não precisamos de partidos para nada, é uma falsa necessidade imposta por uma elite que não assenta no mérito e na capacidade qualitativa, mas principalmente na astúcia.
Os partidos são uma organização que sequestra a nossa capacidade de intervir e participar e impõe-nos uma falsa ilusão de escolha. Escreveu Weil nesse seu opúsculo: «Os partidos são instrumentos que se transformam abusivamente em fins em si próprios. O seu propósito é o crescimento numérico e do poder. A sua linguagem-pensamento é a propaganda.
Para fazer parte dos partidos, é preciso renunciar à autonomia da reflexão e do juízo. Se isto não acontece, a pessoa é suspeita de traição. O partido é um ídolo que pede idolatria, e a sua lógica é tipicamente bélica: vencer ou perder.»
A existência de partidos que não pretendem a sua própria extinção significa que essas organizações querem e servem para manter as pessoas num estado de servidão e menoridade permanentes.
Quanto maior é a força dos partidos, menor é a democraticidade, ou seja, a intervenção e participação das pessoas. Se numa sociedade os seus cidadãos não têm capacidade e conhecimento básicos para participar no governo dessa sociedade e proporem leis e asseguram a execução destas, estamos perante uma farsa.
Os partidocratas são contra a democracia direta, embora tenham sempre o conceito de povo na ponta da língua, há temas, geralmente os mais importantes, que consideram que esse povo não tem capacidade para decidir. Veja-se o que aconteceu com os referendos sobre os tratados da União Europeia e outros temas verdadeiramente importantes e que a todos dizem respeito. Até casos particulares, como o referendo recente sobre o uso de trotinetes em Paris, invulgares nesta estranha democracia.
No plano interno, uma sociedade deveria escolher a cada momento os seus melhores para prestarem o melhor serviço cívico, os médicos tratarem dos assuntos da saúde, os professores do ensino, os advogados e os juízes das leis, etc. A democracia directa é uma expressão verdadeira da ideia de democracia, como é notório nas organizações de cidadãos independentes e dos seus movimentos. Se um cidadão não está capacitado para exercer a democracia direta, por que estará para escolher um partido e os nomes desse partido para governarem um país?
O pilar fundamental de uma democracia é a educação. O individuo deve ser capaz de ser crítico, tomar decisões, ser capaz de escolher, conhecer os seus direitos, mas também de cumprir as suas obrigações e participar ativamente no governo da cidade. Não há democracia com cidadãos passivos, dependentes, ignorantes e manipulados.
Uma democracia genuína caracteriza-se por ser um sistema em que numa comunidade o maior número de pessoas participa nas decisões que moldam as suas vidas e também podem eleger por um período limitado de tempo, representantes, de preferência os mais competentes, para assegurarem o governo da sociedade, tendo sempre presente a importância de que cada cidadão deve estar suficientemente informado e capaz de intervir e participar nesse governo.
Com o desenvolvimento do liberalismo assistimos a um outro golpe, letal, na verdadeira democracia. A participação dos cidadãos na política, ou seja, nas decisões e escolhas sobre o destino das suas vidas e da sociedade, é já praticamente nula. Esta realidade interessa até à nova oligarquia política vigente. As elites políticas estão cada vez mais afastadas dos cidadãos, a política é cada vez mais uma técnica, um ramo do ‘marketing’, e os políticos pensam principalmente na manutenção do seu poder e dos seus grupos, e por sua vez estão dependentes de elites económico-financeiras que detém um poder transnacional que reduziu as soberanias nacionais a simples colónias. Esse poder transnacional não é eleito nem escrutinado. Esse é o poder que controla os mercados, os bancos, e impõem os seus ditames económicos e societais às soberanias nacionais. Temos então uma democracia que não radica o seu poder nas pessoas, mas em donos e corporações especializadas no poder. Os Estados são plataformas de serviçais desse poder transnacional, os políticos, que podem como compensação trabalhar depois para esse poder.