Os criptoativos são ativos digitais que utilizam a criptografia para garantir transações seguras, controlar a criação de novas unidades e verificar a transferência de ativos. Baseados em tecnologias descentralizadas, como a blockchain, não dependem de uma autoridade central, como um banco ou governo, para gerir e regular as suas operações. As criptomoedas são as formas mais conhecidas de criptoativos, sendo a Bitcoin a primeira e mais popular delas. Outras criptomoedas incluem Ethereum, Litecoin e Ripple. Funcionam como uma moeda digital descentralizada, podendo ser usadas para transações financeiras. Mas o mercado dos criptoativos enfrenta desafios significativos em Portugal e na União Europeia, tanto a nível jurídico quanto prático.
A regulamentação Markets in Crypto-Assets (MiCA) surge como uma resposta para criar um quadro harmonizado, aumentando a segurança e a transparência no setor. No entanto, ainda subsistem questões como a incerteza fiscal e a falta de informação entre investidores. David Silva Ramalho, advogado e associado coordenador na equipa de Contencioso Criminal, Risco e Compliance da Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados – que lançou recentemente um novo serviço de investigação e tracing de criptomoedas e outros ativos virtuais com software especializado e a certificação em investigação -, explora o impacto do MiCA nas empresas e investidores, as implicações das moedas digitais emitidas por bancos centrais e os esforços das autoridades portuguesas na prevenção de crimes financeiros ligados às criptomoedas.
No contexto jurídico, o regulamento europeu MiCA surge como uma resposta aos problemas de fragmentação regulatória, oferecendo um quadro harmonizado tanto em conceitos quanto em enquadramento legal. O entrevistado salienta que o MiCA aborda “a criação de requisitos mais exigentes para a atuação dos prestadores de serviços de criptoativos na União Europeia, designadamente em matéria de segurança e transparência”. O regulamento também protege os consumidores contra práticas de manipulação de mercados e prestadores de serviços fraudulentos, bem como contra o risco de perda de criptoativos sob custódia de terceiros.
Apesar dos avanços, David Silva Ramalho admite que “continuam a existir matérias que escapam a este quadro jurídico, como sejam as de natureza fiscal, onde ainda há alguma fragmentação regulatória e incerteza”. Além disso, questões relacionadas aos NFTs, particularmente os de arte e colecionáveis, permanecem sem regulamentação clara, embora o entrevistado considere esses problemas “pouco preocupantes”.
Naquilo que diz respeito aos desafios práticos, o especialista destaca o desconhecimento generalizado sobre o funcionamento dos criptoativos e os riscos envolvidos. Esse desconhecimento fomenta a crença de que as criptomoedas são uma “chave para a riqueza”, o que tem sido explorado por burlões. Muitas pessoas “investem em criptoativos que não compreendem, sob a convicção de que ficarão ricas, apenas para virem a descobrir que, ou nunca detiveram de facto criptoativos, ou se os detiveram, rapidamente os passaram para as mãos de terceiros que deles se apropriaram”.
Na ótica do advogado, o regulamento MiCA terá um impacto profundo nas empresas que prestam serviços de criptoativos. Estas estarão sujeitas a uma autorização prévia das autoridades competentes dos Estados-Membros e a rigorosos requisitos de compliance. “Os prestadores de serviços de criptoativos terão de se esforçar, não apenas para obter o licenciamento, mas também para implementar e manter políticas de compliance particularmente exigentes”, explica o especialista. Para os investidores, o impacto será mais indireto, sendo que a regulamentação visa garantir maior segurança e transparência nas operações. O MiCA tem ainda o objetivo de proteger os consumidores contra perdas e fraudes, promovendo um ambiente mais confiável para investimentos.
Questionado sobre a possibilidade de os governos europeus, incluindo o de Portugal, darem prioridade ao desenvolvimento de moedas digitais emitidas por bancos centrais (CBDCs) em detrimento das criptomoedas descentralizadas, o especialista não descarta essa hipótese, dado o maior controlo e segurança oferecidos pelas CBDCs. Quanto ao futuro das criptomoedas, acredita ser “improvável” que venham a substituir o euro em grande escala.
“A complexidade do seu funcionamento, que afasta uma parte significativa da população, e a elevada volatilidade, ainda que mais mitigada nas stablecoins, geram desconfiança”, afirma. Nos próximos anos, prevê-se que as criptomoedas continuem a ser vistas predominantemente como um meio de investimento e não como uma alternativa à moeda fiduciária.
Portugal tem dado passos importantes na prevenção de crimes como a lavagem de dinheiro e o financiamento ao terrorismo no contexto dos criptoativos. O também professor universitário relembra que, no passado, as autoridades judiciais e policiais presumiam que o uso de criptoativos indicava práticas ilícitas. “Presumia-se, de forma inilidível, a sua ilicitude, mesmo perante os esforços, muitas vezes indiscutivelmente corretos, por parte dos titulares desses criptoativos, em demonstrar que aqueles concretos criptoativos tinham uma origem lícita”.
Atualmente, as autoridades portuguesas já conseguem investigar o fluxo dos criptoativos e interpretar as transações. Contudo, o especialista sublinha a importância de três aspetos fundamentais para a justiça criminal no contexto das criptomoedas: a obtenção de históricos de transações que não podem ser falsificados; a compreensão de que essas transações podem ter múltiplas explicações; e a necessidade de assessoria técnica especializada para determinar com precisão o que aconteceu.
O advogado alerta que é preciso agir mais rapidamente em casos de suspeitas de transações ilícitas. Quando um banco bloqueia uma conta por suspeita de ligação a criptoativos ilícitos, muitas vezes nada é feito para esclarecer rapidamente a situação, o que pode resultar em bloqueios prolongados e injustificados. “A conta pode ficar bloqueada meses a fio, e depois esse bloqueio converte-se em arresto, o que pode demorar anos”, relata.
Outro ponto crítico é a demora nas investigações relacionadas com fraudes com criptoativos. “Se a vítima apresenta uma queixa, e se se suspeita que os valores estão num concreto prestador de serviços de criptoativos, é importante agir de imediato e promover o bloqueio dos fundos na conta de destino, sob pena de, quando finalmente alguém olhar para a queixa, já os valores se terem tornado irrecuperáveis”, acrescenta, defendendo que as autoridades precisam de mais recursos e conhecimento especializado para lidar de forma eficaz com estes casos.
Os dados que espelham esta tendência Segundo o portal Statista, a receita do mercado de criptomoedas em Portugal deverá atingir 227,7 milhões de dólares (cerca de 207 milhões de euros) em 2024. Espera-se que o mercado apresente um valor total projetado de 219,4 milhões de dólares (quase 200 milhões de euros) até 2025. O número de utilizadores deverá atingir os 3,38 milhões até ao próximo ano.
De acordo com a plataforma Triple-A, atualmente existem mais de 420 milhões de investidores de criptoativos em todo o mundo, o que destaca um interesse global significativo nestes ativos digitais. Os dados sugerem que os investimentos em em Portugal deveriam ser maiores e representar aproximadamente 4,2% da população, indicando o potencial para uma maior expansão.
Os Emirados Árabes Unidos emergem como líderes, com 27,67% da sua população a deter criptoativos. A Índia conta com 7,10% dos seus cidadãos – 103 milhões – a adotar ativos digitais. A China vem logo atrás, com 4,08% da população – 58 milhões de investidores – e os EUA têm 13,22% da população a aderir a esta tendência – quase 45 milhões de investidores.