Num conto de Tolstoy, certo dia, Jesus sem os discípulos meteu-se sozinho pelos meandros de uma cidade até chegar a um apinhado de gente que maldizia o cadáver putrefacto de um cão: uns enojavam-se do cheiro nauseabundo que empestava o ar e da pele pútrida que nem para sandálias daria, outros praguejavam contra as chagas repulsivas e aventavam se não teria sido enforcado por um ladrão. Todos se afastavam de tal nojo, mas Jesus aproximou-se e disse: «Olhai e vede, tem os dentes mais brancos e belos do que as pérolas». Indagando-se sobre aquele homem, perceberam pela sua compaixão que só poderia ser Jesus de Nazaré, o filho de Maria. E dali partiram envergonhados.
Diz a filosofia clássica de Aristóteles, assim a medieval de Aquino, que no ser humano se relacionam hierarquicamente três espécies de almas: a vegetativa, comum a plantas e animais, que realiza operações de regulação orgânica como o crescimento, a nutrição e a reprodução; a alma sensitiva comum aos animais pela qual há operações sensíveis, apetites e desejos, o movimento e, por fim, a alma intelectiva que exerce a vontade, a inteligência, a autoconsciência. É lícita a analogia entre esta tripartição humana e a organização comunitária da humanidade, seja na dimensão espacial da cidade, seja na temporalidade histórica que vai do nascimento de uma nação à ideia de pátria, isto é, desde os que vão nascendo na mesma terra falando uma certa língua, até aos que tomam consciência de um movimento especial em convergência de fins. Uma pátria é, de certa forma, um ser espiritual em sua suprema intelecção, fundado numa alma vegetativa que o sustenta instintivamente, animado de alma sensitiva pela memória que lhe imprime imaginação, apetrechado de consciência visando uma finalidade continuamente recriada entre os meandros difusos do mundo. Sem pátria a nação morre e é isto que está a acontecer a Portugal.
Reparemos. A alma vegetativa portuguesa nasceu basicamente com a 1.ª Dinastia monárquica pela qual fizemos território, buscámos segurança militar para nos protegermos juntos, comungámos do espírito da língua nascente, nela selámos as régias ordenações jurídicas, ganhámos autonomia municipalista pelos forais, tudo nutrindo a nação que crescia; a alma sensitiva esmerou-se na 2.ª Dinastia em dois veios, um pela independência a Castela, outro pela expansão marítima, pois se só Ibéria ou Europa jamais teríamos sido Portugal, daqui rompendo o nosso poder vívido de sensibilidade e imaginação, expoentes maiores na arte manuelina e em Camões; a alma intelectiva impôs-se pela Restauração da 4.ª Dinastia na consciência mais aguda sobre as duas almas anteriores, ou seja, a dor filipina fez-nos saber quem éramos.
Atentemos agora nas ruturas: a crise de 1385 não só integrou o instinto fundacional vegetativo como nos impôs movimento expansivo, a sombra filipina e 1640 confirmou-nos a essência ultramarina, mesmo o terrível cisma do liberalismo em 1820, não obstante a amputação do Brasil e o choque contra a nação católica que sempre fomos, ainda manteve a raiz da memória histórica que, aliás, serviu de arma republicana para a rutura de 1910; por fim, o Estado Novo não só conservou a República (veja-se a toponímia pública mantida) como acentuou o sentido histórico e a independência nacional. Ou seja, ao longo de séculos fomos sempre integrando organicamente o passado.
Aqui chegados eis o erro e a exceção do 25/Abril, a quebra inédita: do regime anterior, esgotado e sem solução para a guerra ultramarina, o golpe inevitável abriu uma revolução destituída de Nação e oposta à ideia de Pátria. O 25/Abril quis romper com a História e a alma portuguesa, Portugal não voltou ao íntimo das suas três almas para se refundar, amar e pensar-se.
Ainda assim a Pátria persiste algures. Alguns dizem-na exangue qual animal morto e dela se afastam, mas olhemos atentos: «Tem os dentes mais brancos e belos do que as pérolas». Peçamos a Jesus que volte por cá!