A alternativa ao sistema e à direita radical

As formulações antissistemas da direita radical são, até ao presente, na maioria, meramente reativas, mas parece não apresentarem ideias e valores sólidos para uma sociedade decente

O século XX foi em termos gerais dominado por duas ideologias a partir dos anos 50, o marxismo e o liberalismo… Ambos sofreram ao longo das décadas seguintes transformações significativas. O marxismo metamorfoseou-se numa esquerda radical, chique, elitista e tribal, com as suas clientelas ativistas. O liberalismo subsumiu todas as variantes partidárias do sistema e a sua determinação dominante transformou-se num poder transnacional baseado principalmente na perspetiva económico-financeira do interesse privado de grandes corporações globalistas.

Vivemos em sociedades de relativa abundância, mas faltam aspetos essenciais, que foram destruídos e no seu lugar ficaram apenas simulacros superficiais. A doença mental afeta mais de 20% das populações ocidentais, o mito da paz civil prometido pelo liberalismo, ao remeter todas as conceções de bem e de vida boa para a esfera privada, não acabou com a conflitualidade humana. Se aumentaram as oportunidades e a capacidade de consumo, a redistribuição da riqueza é cada vez mais injusta, e estamos praticamente reduzidos à condição de usuários e consumidores.

O século XXI assiste a uma reação crescente contra esse sistema liberal, que se transformou num totalitarismo, por enquanto, soft. Essa reação, captada politicamente por novas forças antissistema, trouxe mais interrogações que uma qualquer esperança em boas alternativas.

As boas alternativas ao sistema não podem derivar deste já não tão novo liberalismo que alberga aquilo em que se transformaram socialistas, liberais, sociais-democratas, conservadores, centristas e esquerdistas, e a reatividade antissistema levanta muitas suspeitas legítimas.

No plano civilizacional já não há dúvidas que se rompeu o véu da propaganda da felicidade ocidental, o liberalismo económico e o progressismo (que absorveu o esquerdismo) falharam. A desregulação económica e a desestruturação cultural, ética e social são cada vez mais devastadoras. Autores como Patrick Deneen postulam uma alternativa, uma verdadeira boa alternativa, que designam como conservadorismo democrático do bem comum. Este conservadorismo difere do fenómeno política reputado de direita radical (ou falsamente de extrema-direita e direita populista) que surgiu da desilusão e descontentamento das pessoas e conseguiu de facto capturar essa energia crescente de desilusão com as falsas democracias liberais das últimas década.

As formulações antissistemas da direita radical são, até ao presente, na maioria, meramente reativas, mas parece não apresentarem ideias e valores sólidos para uma sociedade decente. Refira-se que o conservadorismo significa que se preserva o melhor que descobrimos, pensamos e fazemos. Essa ideia nada tem a ver com a convicção que só o passado é bom. Crer que só o passado é bom é tão absurdo, como acreditar que afinal todo o passado era mau e só o futuro é bom.

O marxismo defendia que os “muitos” deviam submeter os “poucos”, mas criando uma elite revolucionária e fracassou. Os liberais, com as suas elites económico-financeiras, mediáticas e intelectuais, que se movem principalmente no plano, abandonaram qualquer preocupação com as soberanias nacionais e as pessoas, optando pelos mercados, dos quais são donos e pelos acionistas. Este liberalismo legitimou um tipo de sistema no qual os “poucos” governam sem qualquer escrutínio, os “muitos”, destruindo o que era o bem comum e os valores fundamentais que tornam as comunidades e as sociedades dignas e decentes.

A esquerda ocidental, com a orfandade de Marx sofreu uma importante metamorfose na sua identidade, tornaram-se elitistas e trocaram o trabalhador, o homem comum, por nichos específicos, por exemplo, a luta de classes foi substituída por batalhas culturais divisórias assentes na raça, no sexo e no género. No universo liberal, o surgir das possibilidades de um novo tipo de poder transnacional, económico-financeiro, político e cultural gerou um abismo intransponível entre o mundo dessas elites e a vida concreta das pessoas. O individuo comum sente-se perdido, cansado e desiludido, é apenas um consumidor, brutalizado por esse tipo de vida, transformado também num contribuinte e espetador passivo que não tem nenhuma influência no destino das suas vida e os benefícios materiais deste sistema são insuficientes para compensar o desenraizamento gerado. Simone Weil definiu de modo notável a importância e o significado do enraizamento: «O ser humano enraíza-se através da sua participação real, ativa e natural na existência de uma comunidade que mantém vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro… Todo o ser humano precisa ter múltiplas raízes. Ele precisa de receber a quase a totalidade da sua vida moral, intelectual, espiritual, através dos ambientes dos quais naturalmente faz parte».

A partir dos anos 80 inicia-se uma verdadeira revolta das elites contra o povo, desprezando o trabalhador, a classe média, o cidadão comum e o pobre. Conceitos como populismo e o extremismo de direita passaram a designar os comportamentos e as opiniões populares. Os momentos eleitorais passaram a inspirar medo a essas elites, porque o seu poder e capacidade de manipulação podia ser colocada em causa. O povo passou a ser referido pelas elites como ignorante, deplorável, fascista, sujo, fácil de manipular, porque poderia recusar o liberalismo progressista. Quando o povo não vota nas orientações inquestionáveis das elites económicas e progressistas estará sob influência do extremismo de direita. Esse sistema liberal usa a nova esquerda, com a qual concordam em tudo no plano dos costumes e dos novos valores, para flagelar qualquer contestação a esse sistema que deve ser identificada como intolerável extremismo de direita. As entidades sociológicas que não partilham do ethos mundialista e progressista são etiquetados de opressores e violentadores, enquanto essas elites são os faróis do bem definitivo. Os privilegiados com as suas clientelas acusam os verdadeiramente desfavorecidos, cada vez mais os “muitos”, de serem ameaça à democracia e desejarem um regime autoritário. Roger Eatwell e Matthew Goodwin no livro Populismo. A Revolta Contra a Democracia Liberal explicam-nos este quadro: «O liberal de esquerda (e de direita) não consegue conceber que as pessoas podem de facto querer menos, imigração, fronteiras mais fortes, menos subsídios para imigrantes recentes que não pagam impostos durante anos e a devolução de mais poder aos Estado-Nação pelas distantes instituições internacionais». Será fascismo querer que se valorize o seu país, a identidade cultural e nacional, o emprego, os serviços públicos e sociais, exigir regras para a imigração descontrolada? Não é também extremismo de direita combater a corrupção, principalmente política, exigir a valorização de quem trabalha, que se reduza a tributação sobre o trabalho e se conheça o destino dos impostos, assim como priorizar aspetos como as tradições, a família e o futuro dos jovens.

Mas a alternativa ao sistema não têm de ser os difusos projetos antissistemas, muitas vezes, apenas oportunistas e protagonizados por demagogos manipuladores. Esses projetos destacam-se por uma linguagem violenta e divisória e parasitam as consequências da destruição dos indivíduos e das comunidades praticado pela hegemonia hiperliberal progressista. Pode existir outra alternativa política que emerge no caos social, político, económico e ético destruidor das falsas democracias liberais. A alternativa do conservadorismo do bem comum, talvez não a melhor designação, pelas conotações do conceito de conservadorismo, tem, aliás, muitos aspetos em comum com uma ideia de esquerda democrática defensora da sociedade decente.

Autores fundamentais de esquerda, de uma esquerda que nada tem a ver com a nova esquerda radical, ou o simulacro de esquerda socialista do presente, por exemplo, George Orwell, Robert Kurz, Jean-Claude Michéa, Wolfgang Streeck e até Guy Debord coincidem nas suas análises em muito com autores que podemos reputar de conservadores como é o caso de Patrick Deneen, Roger Scruton, Michel Sandel e Hanna Arendt.

Deneen refere até que Karl Marx fez as mesmas perguntas fundamentais que o novo conservadorismo, as respostas é que são totalmente diferentes: Como pode uma sociedade garantir as melhores condições dos “muitos” em relação aos “poucos”? Qual a melhor forma de superar os efeitos alienantes da política, da sociedade e da economia liberais modernas? Qual deve ser a melhor relação entre as classes trabalhadores, o poder do capital e a elite intelectual?

A solução marxista redundou na destruição das sociedades por meio de experimentos contra a realidade. Para os conservadores a melhor resposta está na preservação, adaptação e aperfeiçoamento da tradição, dos costumes e da garantia da estabilidade, no procurar, não da oposição dos “poucos” contra “muitos”, mas da cooperação mútua entre ambos em nome de um bem comum.

Este conservadorismo, que podemos também reputar de novo, é a afirmação não marxista do poder de muitos, em defesa de valores de estabilidade, de uma forte visão ética e de um chão de sentido, de normas comunais, do primado da solidariedade e de proteção numa nação, das virtudes cívicas, da importância das pessoas e das soberanias nacionais, da defesa de um Estado pequeno, mas bom regulador e defensor de um sector público e social de qualidade, de um mercado livre com regras e contra a transformação da sociedade numa sociedade mercado. Para este conservadorismo, a liberdade radical, ou seja, o egoísmo e o narcisismo patológicos e o individualismo não são os valores principais de uma sociedade, nem sequer são valores. A ideia que a liberdade significa escolha individual sem interferências e que a esfera social e política resultam do funcionamento dos mercados é rejeitada por esse conservadorismo. As bases de uma sociedade residem no sentido comum, nos valores herdados e aperfeiçoados, nos nossos tesouros culturais resultantes da experiência quotidiana, nas instituições e associações independentes do Estado, na família, na comunidade, no carácter, e na relevância de todos os bens humanos que só podem ser assegurados, não só pelo indivíduo, mas pela comunidade política em articulação com a importância e defesa da liberdade individual responsável. Esta visão significa um regime político misto entre os “muitos” e os “poucos”.

Os liberais, os socialistas, o centro, a falsa direita e o falso conservadorismo já não servem as pessoas, apenas seguem os seus interesses e o aumento de poder das suas elites. Um conservadorismo do bem comum, pelo contrário, defende o trabalho e os trabalhadores, a escala local e regional em detrimento do global, a valorização dos sindicatos, mas também do sector privado, o premiar do mérito e do esforço, e concebe o melhor modo de combater a pobreza através da criação de verdadeiras oportunidades e não a subsidiação da mesma como modelo político. Esse conservadorismo valoriza a iniciativa privada e o premiar do mérito, e uma economia aberta, mas submetida a princípios éticos, o apoio à classe média e às regiões de cada país, a importância de fronteiras políticas e económicas, a proteção das indústrias nacionais e mais proteção para as pessoas, bons serviços públicos e aposta na dimensão social, o combate aos monopólios económicos e à promiscuidade entre poder económico e política. Este regime não aceita o poder transnacional que extingue as independências nacionais através da economia e de leis com mais poder que as leis nacionais. No plano societal esse conservadorismo valoriza o que une as pessoas e as comunidades, o seu projeto comum em detrimento do que as pode separar ou dividir. Desse modo, por exemplo, considera que as políticas da identidade não devem ser promovidas, por reduzirem o ser humano às suas identidades sexuais e raciais, e rejeita também as visões sem sustentação cientifica e doutrinárias do género. Apoia e incentiva a família como núcleo básico das sociedades, promove as políticas de natalidade e o casamento, mas também o respeito absoluto pela vida privada e as escolhas sexuais, religiosas e políticas de cada um, considera intolerável a discriminação devido a qualquer orientação sexual, raça ou etnia e defende a assimilação por oposição ao multiculturalismo, e rejeita a inevitabilidade da globalização como projeto económico e cultural. Este conservadorismo é o oposto do ethos cosmopolita do desenraizamento e da sua doutrina de um mundo e pessoas sem nações, identidades culturais e sexuais, sem fronteiras e exige que as elites sejam referenciais para toda a sociedade, que sejam exemplos e as principais responsáveis pelo bem comum.