Aqui há uns anos assisti a uma conversa entre dois dos meus filhos. Na altura um tinha sete e o outro três anos. O mais novo estava empolgado a fazer a descrição do melhor amigo, que graças ao seu olhar atento e relação próxima era como um retrato minucioso: «É alto, tem o cabelo preto, olhos castanhos, é divertido, gosta de jogar à bola, tem cor de pele castanha…» Aqui o irmão salta: «O quê? Não podes dizer isso! Estás a ser racista!» O mais novo, incrédulo, não percebe nada. O mais velho tenta explicar recorrendo aos seus fracos argumentos, mas ele continua sem entender. Por que não pode dizer de que cor é a pele? Não queríamos saber quem era o amigo? Parecia-lhe evidente que essa era uma parte essencial da sua caracterização para que o pudéssemos imaginar.
Depois de anos de alguma desatenção, a sociedade está empenhada em incutir nos mais novos princípios fundamentais que se baseiam na igualdade de direitos – sejam das crianças, das culturas, religiões, género ou pessoas mais vulneráveis. A intenção é louvável, mas a forma como por vezes é concretizada nem sempre parece fazer colher os melhores frutos.
As crianças não são racistas, não distinguem ou escolhem os amigos pela cor, língua ou género, mas de acordo com os comportamentos, atitudes, interesses e personalidades. Neste sentido, o trabalho das escolas devia passar pela promoção da união e não da cisão, pelo crescimento e relacionamento saudável entre todos, que se baseia naturalmente em valores como o respeito e a igualdade, independentemente de questões de cor, cultura ou género. Falar de racismo prematuramente só vai confundir as crianças e gerar clivagens. Pode promover grupos, fossos e preconceitos num recreio onde todos se davam como iguais, porque ainda estavam longe destas especificidades que pouco lhes interessam. Interessa-lhes a amizade, a brincadeira, o companheirismo, quem traz a bola ou quem é capaz de guardar os seus preciosos segredos.
Martelar questões destas carregadas de uma pesada história de desigualdades e injustiça é transpor para os mais novos as preocupações dos adultos, que lhes chegam já muito viciadas, cheias de estigmas, culpabilidades e moralismos. Se queremos que a nova geração tenha valores diferentes dos que condenamos então devemos ser nós a dar o exemplo em casa, na escola, na relação com os outros, no dia a dia.
Cair no erro de dizer que somos todos iguais, como às vezes se quer insistir, não faz sentido, porque naturalmente não somos, como é evidente, e só cria confusão. As crianças sabem que uns colegas são mais altos do que outros, nem todos têm os olhos da mesma cor, muitos falam português, mas outros falam ucraniano ou mandarim, uns são meninos, outros meninas, uns mais calmos, outros mais agitados, uns de pele mais escura, outros de pele mais clara. E tudo isto é claro e evidente para eles. Não são estas diferenças que os fazem ser mais ou menos amigos de alguém, mas os comportamentos e afinidades. É importante que aprendam que todas as crianças têm os mesmos direitos, isso sim! Entre eles o de serem respeitadas pelos colegas.
Manter o mesmo discurso é não permitir que o pensamento possa evoluir e que, logo desde pequenas, as crianças caiam na mesma teia de que ainda nos tentamos desenredar. O debate sobre estes assuntos deve acompanhar o contexto, as dúvidas e necessidades das crianças de cada escola, mas de uma forma geral a reflexão deve ser feita em relação a comportamentos, relações, emoções e atitudes e não a nacionalidades, culturas ou etnias o que, só por si, é criar clivagens desnecessárias. É gerar estigmas, inseguranças e fragilidades nas suas cabeças, por vezes, mais arrumadas do que as nossas.