Os dados são claros: as denúncias anónimas feitas à Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ), e encaminhadas para as Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), têm aumentado nos últimos anos. Desde que constam nos Relatórios Anuais de Avaliação da Atividade das CPCJ, o ‘salto’ mais significativo ocorreu entre 2020 e 2021. No primeiro ano, o valor era de 2905 e, no segundo, de 4012 – mais de 30%. Em 2022, foi de 4770 e, no ano passado, de 5571. Ou seja, em três anos quase duplicaram. Apesar de constituírem uma ferramenta valiosa, a verdade é que estas queixas acabam por denunciar casos de crianças que não estão em risco. Como situações que são apenas mal-entendidos ou quezílias entre vizinhos.
Embora o anonimato seja uma ferramenta crucial para proteger menores em risco, a sua aplicação indevida está a consumir recursos valiosos e a ser intrusiva em famílias sem historial ou indícios de maus-tratos, como destaca Joana (nome fictício), que lidou com vários destes processos: «Todas as sinalizações que chegam às comissões têm de ser abertas como processos. Todos, seja o que for. E depois pode ser eliminado ou arquivado, mas tudo tem de ser averiguado», relata ao Nascer do SOL. Esta necessidade de investigação profunda está a sobrecarregar o sistema e a criar impactos negativos em famílias inocentes.
Por outro lado, Joana frisa que o aumento das denúncias anónimas é particularmente notável desde a pandemia. Este período intensificou tensões sociais e facilitou acusações entre vizinhos. A sobrecarga de trabalho é outra das consequências deste aumento de denúncias anónimas, muitas vezes infundadas. «As instalações são péssimas, o número de técnicos é mínimo… É uma loucura», desabafa.
A falta de recursos, defende, está a ser agravada pelo tempo e esforço dedicados a casos que acabam por não ter fundamento. «As pessoas acham que a comissão existe para retirar crianças aos pais. Mas ninguém quer isso. O que fazemos é ajudar a organizar a família de modo a que tudo o que se faça seja como deve ser», reforça. Há que focar em casos que realmente justifiquem intervenção.
Vinganças pessoais
Um dos maiores problemas apontados por Joana é a maldade por trás de algumas destas denúncias. O sentimento de impunidade associado ao anonimato faz com que pessoas usem o sistema para vinganças pessoais, o que é «propositado e assustador». Para Joana, é evidente que o sistema precisa de ser melhorado. Embora algumas denúncias sejam legítimas e devam ser investigadas, há um claro «desperdício de recursos» em casos que não o justificam. Por exemplo, o de bebés com poucos meses que choram, incomodam os vizinhos e, consequentemente, acabam sinalizados.
«Eu acho que se pode olhar para a lei e melhorá-la, organizá-la como deve ser», sugere, apelando a uma reforma legislativa que proteja tanto as crianças como as famílias injustamente visadas. «Se agora toda a gente se lembrar de que não gosta do vizinho e decidir fazer uma denúncia anónima, isto vai ser insustentável», salienta.
Para se fazer uma denuncia anónima basta indicar um nome ou morada e um texto descritivo da situação. O processo arranca, seja qual for a denúncia, e o procedimento obriga a que os pais sejam chamados, a criança é ouvida, a escola contactada e feita uma visita ao domicílio. Caso os pais não permitam qualquer uma destas ações, o processo é arquivado na CPCJ e segue obrigatoriamente para o Ministério Público. As CPCJ não têm poder para arquivar liminarmente os processos antes de percorrem todo o procedimento.
Em entrevista ao Nascer do SOL, a advogada e antiga deputada do PSD Isilda Pegado aborda os desafios enfrentados em processos relacionados com a proteção de crianças e jovens. Como «a falta de seriedade e razoabilidade na condução de alguns processos após denúncias, resultando em decisões precipitadas e prejudiciais». Um exemplo citado é o de uma criança sinalizada por se ter afastado dos responsáveis por alguns minutos, levando a um processo de meses.
«Em muitos casos, o sofrimento dos pais é desproporcional, especialmente quando não há evidências concretas de maus-tratos, mas sim uma presunção de culpa por parte dos órgãos envolvidos», observa. A advogada defende que as famílias envolvidas em processos de proteção e promoção devem ter acesso a advogados desde o início para garantir uma defesa adequada.
Isilda Pegado sugere uma reforma legislativa que melhore o sistema de denúncias, garantindo que haja um acompanhamento mais criterioso dos casos pelas CPCJ e órgãos de segurança social. E conclui que «as denúncias devem ser usadas de forma responsável, protegendo as crianças, mas também considerando as necessidades e direitos dos pais». Uma vez que as denúncias anónimas abusivas podem afetar tanto pessoas de classes mais desfavorecidas como famílias com recursos financeiros. A título de exemplo, Inês Teotónio Pereira, jornalista do Nascer do SOL e do i, foi vítima de uma denúncia infundada: «Escrevi uma crónica sobre a ida do meu filho para um campo de férias e acabámos na CPCJ arrastados por uma denúncia anónima».
Fragilidades do sistema
Hélio Bento Ferreira, psicólogo e chefe de setor do serviço de assessoria aos tribunais do NIJ Aveiro (Instituto da Segurança Social), está convicto de que as denúncias anónimas têm um papel crucial na proteção de menores, mas também levanta questões sobre a sua possível utilização abusiva. Sublinha que, embora possam ser feitas denúncias com má intenção, o sistema está preparado para avaliar cuidadosamente cada caso. «O processo prevê a confrontação entre aquilo que vem sinalizado e o que é verificado», explica, acrescentando que as CPCJ têm o poder de arquivar processos sem dar seguimento caso as denúncias não se confirmem. Os procedimentos têm sempre de ser seguidos, indiferente ao conteúdo da denúncia.
No entanto, há um reconhecimento das fragilidades no sistema, nomeadamente a falta de auditorias e de supervisão pedagógica em algumas comissões. «As comissões de proteção estão muito sozinhas», refere o psicólogo, observando que, em certos casos, a falta de formação jurídica pode comprometer a qualidade das intervenções. Alerta ainda para a necessidade de uma maior uniformização das práticas a nível nacional, sugerindo que se deve auditar e padronizar os procedimentos em todo o território. Quanto à questão de manter ou não o anonimato das denúncias, o especialista é claro: «A possibilidade de participação anónima deve ser mantida». Mas reconhece a necessidade de medidas que desencorajem abusos. «A tendência não deve ser complicar o procedimento, mas sim garantir que o sistema funciona com a devida cautela», afirma.
O principal desafio, diz, está em garantir que o sistema de proteção se mantém proativo e não apenas reativo. «O sistema tem sido uma reação ao que se considera estar mal», declara, sublinhando que a falta de monitorização constante torna os resultados muitas vezes opacos.
Contactada pelo Nascer do SOL, a CNPDPCJ confirma que «nos últimos três anos verificou-se um aumento das comunicações/denúncias de situações de perigo de forma anónima.
«Na dúvida, e à cautela, dever-se-á comunicar a, ainda que eventual, situação de perigo. O facto de serem anónimas, não quer dizer que não devam ser avaliadas, devendo mesmo essa avaliação ser reforçada», defende, indicando que as CPCJ «avaliarão a situação para efeitos de abertura e demais termos do processo de promoção e proteção. E garante que «situações que não se traduzam em perigo serão arquivadas liminarmente».
«Depois de aberto, o processo corre os seus termos a favor da criança, com o intuito de garantir o seu superior interesse. A questão das comunicações falsas, nesta, como em qualquer outra matéria, deve ser tratada com todo o rigor», declara, acrescentando que a «má utilização ou a comunicação de situações falsas a todos prejudicará, sendo as crianças as principais lesadas».