Ainda há espaço para o Calvin?

Seria bom que o Calvin pudesse sair dos livros. Que lhe permitíssemos andar pelas ruas, pelas escolas e pela casa de cada família.

Todos conhecemos a dupla Calvin & Hobbes. É uma deliciosa série de banda desenhada de um miúdo de seis anos que tem o mundo inteiro para desbravar na companhia do seu urso de peluche, Hobbes, que ganha vida quando ninguém está a ver.


Calvin é a personificação máxima da genialidade e imaginação. É dono de uma criatividade sem limites onde por vezes a única barreira são os adultos, sobretudo os pais, que exaustos de lidar com a inquietação do filho apresentam-se com um ar resignado.


Na juventude, quando lemos os livros do Calvin, imaginamos que seria fantástico ter um filho assim, um furacão de imaginação e criatividade, um pensador, uma força da vida. Sempre irrequieto e curioso, que aparece muitas vezes a correr e a fazer perguntas insólitas, sobre tudo aquilo a que os pais não conseguem responder e a arranjar explicações mirabolantes para o impossível.


Quando crescemos e voltamos a abrir um destes livros, olhamos com mais atenção para os pais e entendemos melhor o seu ar miserável quando são obrigados a levantarem-se durante a noite para verificar se há monstros debaixo da cama ou responder às questões mais improváveis. Mas ainda assim achamos que compensa.


Calvin é um miúdo incrível! E é também o miúdo que pode estar em vias de extinção.


O Calvin tem tempo para estar atento e pensar sobre os pequenos e grandes detalhes da vida, para colocar hipóteses, para tentar descobrir com o seu tigre as questões mais insignificantes e também as mais pertinentes. O Calvin é irrequieto, é eloquente, é divertido, é mexido, é cansativo. Por vezes vira o mundo ao contrário porque se perde numa enorme brincadeira, constrói, esfola os joelhos, anda à luta com o tigre, questiona-se sobre as raparigas, faz disparates, imagina coisas, sonha…


Receio que muitas crianças não tenham tempo nem espaço para ser como ele. Para brincar, e imaginar sem programa, sem jogos padronizados, sem agenda, nem marcação. Para se aborrecerem, para pensarem e construírem as suas próprias brincadeiras.


Até que ponto lhes permitimos serem inconvenientes nas suas dúvidas, serem irrequietas, mexidas, barulhentas, lançarem-se à descoberta, aos desafios, encontrarem as suas próprias respostas para as incertezas com que se deparam? Até que ponto têm tempo e disponibilidade para o fazer?


E até que ponto os telemóveis não vieram ocupar o lugar do Hobbes, o tigre que acompanha o Calvin nas suas descobertas, brincadeiras e inquietações? Com a diferença que em vez de um companheiro de brincadeira, anulam e apropriam-se do pensamento, esgotam o pouco tempo livre que restaria às crianças depois da escola e das atividades para estarem com elas próprias, para dialogarem consigo e se perderem, encontrarem e crescerem nas suas dúvidas e brincadeiras.


Seria bom que o Calvin pudesse sair dos livros. Que lhe permitíssemos andar pelas ruas, pelas escolas e pela casa de cada família. Que as crianças pudessem ser irrequietas, inquietas e inquietantes, que tivessem tempo e liberdade para pensarem e crescerem. Para aproveitarem, moldarem e trilharem aquele caminho que já não volta, que devia ser de crescimento e descoberta e que muitas vezes acaba assoberbado de tarefas, controle e inibições.

Psicóloga na Clinica Lab Rita de Botton