“As crianças não são do Estado nem das famílias”
João Costa, ex-ministro da Educação socialista
A verdadeira história das aulas de cidadania e da temática do género pode ser contada de modo sumário desde a sua dimensão local, o nosso país, à sua dimensão macro, no plano internacional no ocidente.
Uma advertência fundamental, sempre que se utilizar a palavra género, esta só tem um uso adequado se seguir os dogmas da doutrina dos movimentos feministas de última geração e ativismos LGBT (não misturo os ativismos com causas fundamentais). O conceito tem donos e qualquer receção critica, que não seja validado por esses donos, será demonizada de modo implacável.
A palavra género deve sempre ser identificada como luta contra a discriminação, contra a violência e a desigualdade. O género tem um papel idêntico ao que tinha o proletário para o marxismo leninista, para não utilizar outros exemplos mais polémicos. Nunca pode ser colocado em causa ou questionado, porque é dotado de uma aura autoritária de bem supremo.
O conceito é uma categoria gramatical, mas foi apropriado por um determinado tipo de ativismo para refazer a ideia de ser humano. Este ideia embora tenha defensores em várias áreas, não tem qualquer fundamento biológico ou psicológico, nem histórico (não me refiro à psicologia do papel e caneta). O conceito e a teoria que lhe está subjacente é principalmente uma fantasia bizarra. Diz-nos essa teoria que a identidade depende do que escolhemos ser, somos uma espécie de deuses que nos determinamos totalmente, desde que removamos todas as forças opressivas que nos querem condicionar. A nossa identidade sexual é irrelevante perante uma nova identidade, a de género. Cada um escolhe o quer ser, e somos o que cada um sente relativamente ao próprio género, o que esses movimentos designam como o género manifestado. Ser homem ou mulher são apenas construções sociais e culturais, que podem ser boas, se as propagadas pelo ativismo, más, se resultarem da história, da natureza e da cultura.
Mas o objetivo deste texto não é proceder a uma história do surgir do conceito do género e de como o ativismo LGBT e o feminismo radical dele se apropriaram, transformando-o em chave explicativa da história da humanidade. Interessa-nos, sim, perceber se o tema aulas de cidadania está ou não capturado por agendas ativistas específicas. A resposta é sim, está. Importa também desfazer alguns mitos. As aulas de cidadania não são de facto unicamente sobre a questão do género, também não há uma ideologia do género, mas há uma teoria do género baseada apenas em pressupostos bizarros e falsos que devemos aceitar de modo acrítico e subserviente. Não é também verdade que ser crítico dessa teoria bizarra signifique ser extremista de direita, fascista ou um perigoso fundamentalista religioso. Aliás, o ativismo do género é tão perigoso e absurdo como esse extremismo e fundamentalismo oposto. Não é verdade que ser crítico dessa teoria bizarra, seja querer atacar homossexuais ou transexuais, ou querer as mulheres de volta à cozinha e obedientes perante o homem.
As temáticas da igualdade dignidade entre homens e mulheres, a não discriminação das pessoas baseadas na sua orientação sexual são pilares de qualquer sociedade minimamente civilizada e decente e devem estar repercutidas nos sistemas de ensino. Mas a teoria do género não é sobre igualdade e respeito, mas sobre falsificações aberrantes desses conceitos. Eu não devo ensinar mentiras, por exemplo, os seres humanos não são neutros, eu não escolho a minha identidade, os homens e as mulheres não são unicamente construções culturais, no século XXI no Ocidente não se vive numa sociedade patriarcal, nem os heterossexuais querem perseguir os homossexuais, nem a masculinidade e a feminilidade são más, mas sim a normalidade (aceção estatística e natural), as famílias também não são uma construção opressiva, e a transsexualidade não é a condição matricial da espécie humana, e sim, existe uma natureza humana.
O problema é que a temática do género nas aulas de cidadania tornou-se uma coutada desses ativismos relacionados com o viés LGBT e feminista radical (que tem até perseguido mulheres que defendem precisamente o ser mulher, algo diferente de um homem que sente ou diz que é mulher), e são eles que definem os conteúdos, o modo como estes são apresentados e vigiam até qualquer desvio. Esse ativismo considera que tem a única visão correta e legitima sob o tema. Ora, entregar um tema curricular do ensino público a um tipo de ativismo é algo semelhante a entregá-lo unicamente a uma religião ou ideologia. … O ensino público não pode estar entregue a visões totalitárias, pseudocientíficas, radicais e fundamentalistas. Veja-se como o crítico dos dogmas dessas teorias é logo rotulado com todas as fobias e até idealmente criminalizado.
Os professores em parte tiveram alguma responsabilidade nesse controlo ativista, pois começaram, para preencher as horas dessa temática na disciplina, a convidar apenas associações ligadas à fábula rentável do género. Os governos também formaram comissões, observatórios, etc., controlados por um viés ideológico e totalitário sobre o tema. Transformar, por exemplo, a temática da questão da diversidade e da diferenciação sexual numa ideologia baseada em pseudociência e em falsidade e impô-la na escola como cidadania, na verdade, nem o marxismo ou outros ismos ousaram.
Essa visão do género refere uma nova antropologia que se baseia apenas em crenças delirantes. Não é exagero afirmar que a luta contra a desigualdade e a discriminação se transformou numa obsessão com a ideia de transsexualidade e com o que designam por jovens LGBT e uma ideia de mulher menorizada que se define por ser vítima de machos heterossexuais. Essa desconstrução absurda da realidade e da natureza humana instalou-se como um vírus na cabeça dos políticos e até dos intelectuais e jornalistas e tem gerado farsas chocantes a lembrar a inquisição. Uma delas foi protagonizada por Ketanji Brown Jackson indicada pelo presidente Joe Biden para o Supremo tribunal, nas inquirições prévias, recusou responder sobre o que entendia ser uma mulher…O medo do poder sinistro dos donos da teoria de género como ideologia oficial oferece estes pormenores preocupantes.
Ora, o ensino público e laico numa democracia não deve servir para doutrinação ideológica e catequese, seja ela religiosa ou LGBT, ou desse feminismo radical que é também anti-mulher. Têm razão os que acusam a existência de um viés ideológico desses ativismos nos conteúdos do género nas aulas de cidadania. Os argumentos que utilizam é que podem ser bons ou maus. Criticar as bizarrias do género não significa substituí-la por visões beatas e serôdias, sejam religiosas ou de direita, sobre a mulher, a sexualidade e as diversas orientações sexuais.
Citarei dois exemplos, podia referir mil outros, demonstrativos como a acusação que esse ativismo domina totalmente a abordagem da temática do género é factual e tem de ser combatido na defesa da sanidade mental dos jovens.
Nas recomendações para as escolas para o ano de 2023 lemos o que é o combate ao sexismo: «… designadamente: dirigir-se à pessoa pelo nome e género gramatical indicado pela própria pessoa ou pelos seus representantes legais… Fazer respeitar o direito a utilizar o nome autoatribuído… Assegurar o acesso a casas de banho e balneários». Neste documento do Ministério da Educação, ficamos a saber que se a pessoa se sentir discriminada ou agredida, basta sentir-se, deve fazer queixa, para que o acusado tenha sérios problemas, e são apontadas uma quase dezena de organizações LGBT para se realizar a denúncia. O Guião como o nome de “O direito a ser nas Escolas” foi lançado no dia do Orgulho LGBT, pela Direção-Geral de Educação e pelo CIG, a famigerada Comissão para a Igualdade de Género (tem representantes de todos os sectores ideológicos da sociedade civil? não…). Muita gente considera que este tipo de organismo é ativismo disfarçado. Aliás, o PS chegou ao ponto de impor que os professores recebessem formação em doutrinação de género.
Vejamos agora outro exemplo sobre guiões (são 5) de educação de género e cidadania promovidos pela CIG. Um dos textos inicias do guião para o ensino secundário diz-nos: «Esta caracterização (que podemos apelidar de quase “automática”) dos homens e das mulheres em termos pessoais e sociais, a partir do conhecimento da sua categoria biológica de pertença, abriu caminho a raciocínios simplistas de explicação dos comportamentos individuais, à crença na estabilidade dos atributos individuais e à ideia de que seria “normal” que os seres masculinos tivessem certas características psicológicas e os seres femininos evidenciassem outras, distintas. Para além desta visão dicotómica não ter qualquer fundamento científico – …». Há várias teses deste quilate, certamente consideradas “científicas” e provadas na lógica da autorreferencialidade desse ativismo.
Estes manuais são apresentados como material a ser utilizado por professores desde o do pré-escolar ao fim do ensino secundário, nas mais diversas disciplinas e particularmente na temática do género e fizerem parte da política da área da Educação validada pelo PS e pelo PSD. Por isso é apenas propaganda a conversa do atual primeiro-ministro, pois ainda apoiou recentemente a sua ministra da pasta da Juventude e Modernização referia que não há mulheres que menstruam, mas pessoas que menstruam.
Estes guiões sobre igualdade tem uma curiosidade, catorze autores são mulheres e um é homem.
Ora, num trabalho sobre um tema para lecionação com jovens, importa perceber que referências estão presentes, afinal é um trabalho “científico” a aplicar nas aulas pelos professores. Vejamos se há cientificidade ou é apenas contaminação ideológica delirante.
Encontramos a referência de panfletárias radicais bem conhecidas como Judith Butler, para quem o homem e mulher são conceitos mutáveis, e o verdadeiro mundo livre é pós-binário, ou seja, dispensa a ideia de homem e mulher, principalmente como identidades fixas. Ser homem ou mulher é uma tecnologia que se aprende e é-nos imposta como refere, outra autora citada, Teresa de Lauretis. Outro nome referido é Adrienne Rich, crítica da maternidade em contexto patriarcal, e que considerava a família nuclear e a heterossexualidade como algo compulsório, e instrumentos de controlo e opressão por parte do homem como macho tóxico. Rich fala-nos da obrigatoriedade heterossexual imposta à mulher que assim negaria a natureza lésbica da mulher. Outra referência é Joan Scott, uma das primeiras autoras a desprezar a ideia da relação entre sexo e género e a afirmar que se nos ficarmos apenas pela ideia de homem e mulher, não avançamos muito na compreensão da realidade. Ann Oakley que defendia que o género depende unicamente da cultura e serve para legitimar a subserviência feminina por parte do homem, é outra das referências, tal como Laury Penny apologista que o Estado deve pagar o desenvolvimento de bebés em laboratório para libertar a mulher. Está então implícito que o ser humano é hibrido e fluido, o género é e deve ser uma escolha da nossa consciência, mulheres e homens são construções sociais para nos catalogar com determinados rótulos, taras do poder opressivo dos heterossexuais e a correlação entre homem e masculino e mulher e feminismo é meramente arbitrária. O futuro será um mundo pós-binário e pós-género.
Estes nomes, entre outros, são fundamentais no ativismo da teoria do género, ou seja, a produção do feminismo radical que é principalmente a visão mais extremista dos ativismos LGBT e queer atuais.
O mais relevante é que o alarido sobre as declarações de Montenegro são inúteis, mera propaganda política, a temática da teoria do género não depende de decisões locais ou nacionais, pois pertence a um plano mais geral, trata-se de uma área da ideologia hiperliberal progressista. O mundo deve ser transformado num imenso centro comercial, e toda e qualquer resistência, sejam vínculos, identidades e pertenças devem ser destruídos. O consumidor ideal não tem identidade, seja ela sexual, cultural ou geográfica. O homem atomizado não tem sexo, nem qualquer ligação que não a provocada pelo frenesim por novidades permanentes e ininterruptas. O progressismo deve providenciar os simulacros de valor neste mundo gerido pela acumulação infinita de capital. A União Europeia, a Unesco, a ONU, invadem anualmente a Europa com documentos obrigatórios sobre como pensar e falar sobre a teoria do género. Essa é a raiz.