O título do artigo desta semana, retirado da criatividade de Saramago, mais do que versar sobre alguém que sai da obscuridade mediática por ser o que é, um misantropo político, representa o começo de mais um artigo sobre a falta de decência que os populistas trouxeram à nossa vida coletiva.
Este Ricardo Reis, sobre o qual escrevo, é o assessor do grupo parlamentar do Chega que louvou a morte de uma pessoa, escrevendo no X: «Menos um criminoso… Menos um eleitor do Bloco». Claro está que, como bom cobarde, apagou o que escreveu. Não que não represente o seu pensamento, e de muitas pessoas do seu partido, mas apenas porque percebeu que aquele excesso representava um erro político.
Qualquer pessoa com o mínimo de humanismo no coração saberá que a morte de um ser humano, mesmo de um criminoso (não sei se é, tão pouco me interessa julgar), é a perda de um ser único e irrepetível. Certamente que um cristão sabê-lo-á, mas estes são cristãos sui generis, ou em linguagem popular, ‘de goela’: apregoam a sua religiosidade na conveniência e na circunstância, pouco ou nada o fazem na substância.
Há 4 anos, escrevi neste jornal um artigo, com o título de Venenos extremos, que de certa forma colocava Chega e Bloco de Esquerda como duas faces da mesma moeda. Recordo de, na altura, me terem dito que a comparação era excessiva, uma vez que o BE aceitava as regras da democracia e que o Chega queria alterá-las.
O que mais me deixa perplexo é haver tanta gente que não percebe que o tipo de ação política é a mesma (confrontacional), a instrumentalização negativa do Povo é a mesma e a radicalização de posições é similar. Ambos radicalizam posições e criam autênticas barricadas na sociedade.
A morte de um cidadão, numa operação policial, não devia nem podia ter sido instrumentalizada por estes partidos como foi. Um louvando a morte de um cidadão, outros crucificando a ação policial.
Ambos instrumentalizaram aquela morte e, independentemente de se verificar que algum venha a ter razão nos factos, ambos desinstitucionalizam os acontecimentos. Ao fazê-lo, regaram com gasolina o fogo que já estava instalado. Um lado provoca possíveis atos delinquentes, o outro fortalece o desejo e o impulso para o mal.
No lugar de tentarem acalmar as circunstâncias e exigirem o esclarecimento cabal das circunstâncias nas quais foi morto um cidadão, os populistas procuraram ter ganhos de barricada. Eles até podem circunstancialmente obter ganhos, mas acabamos todos mais pobres.
Honestamente, e com o caldo de cultura criado, não sei como se sai deste enredo político. As redes sociais permitem vida própria, a comunicação social alimenta-se do sangue destas lutas que dão audiências, e são essas lutas que garantem publicidade.
Mas há algo que sei: os políticos moderados não se podem esconder quando ‘as ruas estão a arder’. O exemplo do presidente da Câmara Municipal de Oeiras, que esteve na rua com as forças de segurança e nos locais onde havia problemas, desde a primeira hora, é a referência a seguir. Não há ruas proibidas às autoridades, políticas, administrativas ou policiais, e não há anátemas que possam ser lançados contra a população. Quem vive no bairro são pessoas cuja vida não bafejou com a fortuna, mas são, na sua larguíssima maioria gente séria e pacata. Não pode ser um conjunto de marginais a definir as pessoas que vivem em habitação pública, tal como não podem ser os populistas a dominar o debate político.
Os políticos querem-se corajosos. Quem se encolhe perante dificuldades ou quem rega com gasolina fogos como o desta semana devem ser remetidos para o mesmo lugar onde poderemos encontrar Ricardo Reis: na irrelevância.
O ano da morte (política) de Ricardo Reis
A morte de um cidadão, numa operação policial, não devia nem podia ter sido instrumentalizada pelo Chega e pelo Bloco de Esquerda como foi.