Investigação põe em causa autenticidade do receituário conventual do século XVIII

Esta investigação desafia a narrativa da doçaria conventual como um legado genuíno e inalterado dos conventos portugueses.

O manuscrito Livro das receitas de doces e cosinhados vários d’este convento de Santa Clara d’Évora, datado de 1729 e guardado na Biblioteca Nacional desde 1959, tem a sua autenticidade questionada após uma nova investigação apresentada esta semana. O pequeno documento, que inclui apenas dez receitas, é um dos poucos exemplares conhecidos do século XVIII e é frequentemente citado para fundamentar a ideia da doçaria conventual. No entanto, segundo os historiadores Isabel Drumond Braga e João Pedro Gomes, ouvidos pela agência Lusa, há indícios de que se trata de uma falsificação.

A dúvida sobre a autenticidade do documento surgiu durante o doutoramento de João Pedro Gomes, que ao estudar a história da doçaria portuguesa observou discrepâncias temporais no receituário, que se revelaram “completamente dissonantes” em comparação com outros manuscritos da época. Uma análise mais aprofundada revelou várias expressões anacrónicas nas receitas, como “cacau em pó”, “ralador de batata” e “rolo de massa” – termos que não correspondiam à linguagem e aos utensílios culinários do século XVIII. Além disso, havia referências a “chávena” e “colher de sopa” como unidades de medida, algo incomum para a época.

Para avaliar a questão, os investigadores contaram com a especialista em paleografia Susana Tavares Pedro, que concluiu que o manuscrito foi produzido na segunda metade do século XIX, ou seja, várias décadas após a data indicada de 1729. “É uma discrepância extremamente acintosa”, afirmou Isabel Drumond Braga, destacando a incongruência entre o estilo do texto e o período alegado.

A análise levantou ainda outras questões. Várias receitas, entre elas a de trouxas de ovos, surgem em livros impressos posteriores, como o Cozinheiro Moderno de Lucas Rigaud, de 1780. “As trouxas de ovos de Lucas Rigaud estão escritas à maneira de Lucas Rigaud. Como é que alguém escreve exatamente como Lucas Rigaud e Lucas Rigaud só aparece 60 anos depois?”, questionou João Pedro Gomes, apontando para um possível plágio anacrónico.

Os nomes das religiosas mencionadas no manuscrito também não constam nos registos históricos do convento de Santa Clara em Évora, reforçando as dúvidas. Não há referências a uma abadessa chamada Maria Leocádia do Monte do Carmo em 1729 e a única pessoa com esse nome assumiu o cargo de escrivã apenas no final do século XVIII.

Antes de ser adquirido pela Biblioteca Nacional, o manuscrito esteve na posse de Francisco Lage, membro do Secretariado de Propaganda Nacional do Estado Novo. Os investigadores não acreditam que Lage tenha falsificado o documento, mas consideram provável que tenha sido enganado quanto à autenticidade do livro. “Parece-nos que ele terá sido enganado e que a Biblioteca Nacional, quando o adquiriu, foi crédula, tal como eu também fui e tantos outros foram-no durante muito tempo”, comentou Isabel Drumond Braga.

Esta investigação lança novas luzes sobre a doçaria conventual e questiona a veracidade de algumas das bases históricas frequentemente citadas, desafiando a narrativa da doçaria conventual como um legado genuíno e inalterado dos conventos portugueses.