Capa negra de saudade

Temos ou não saudade dos tempos em que a família ocupava um lugar de destaque e era considerada inatingível?

Apesar de ter estudado em Lisboa e concluir a minha licenciatura na capital, olhei sempre para a escola de Coimbra com admiração e respeito. O exemplo dos meus pais que lá se formaram, e o de tanta gente que naquela cidade viveu anos de glória em tempos de estudante, nunca me deixaram indiferente. 

Creio que há em todos eles a marca indelével de um passado onde ficaram gravadas recordações reveladoras da magia que se respira e que só entende quem por ali passou. O Penedo da Saudade, onde se encontram comoventes testemunhos poéticos de vários cursos; a velha universidade, um dos símbolos da cidade e grande escola de vida; as famosas serenatas ao luar junto à Sé Velha, palco das verdadeiras emoções dos estudantes, são a prova de que Coimbra é, de facto, um local fascinante e encantador. 

A Balada de Despedida, do 5.º Ano Jurídico 88/89, só pelo refrão fala por si: ‘Capa negra de saudade /No momento da partida/Segredos desta cidade/Levo comigo pr’a vida’. Nestes versos carregados de significado sente-se a nostalgia de um tempo que passou e jamais voltará: ‘Sentes que o tempo acabou?/Primavera de flor adormecida /Qualquer coisa que não volta, que voou /Que foi um rio, um ar na tua vida’. 

Mas se quisermos sair do contexto em que o poema foi escrito, adaptando aos dias de hoje a mensagem que ele transporta, chegamos à conclusão de que há também em todos nós uma capa de saudade a acompanhar-nos para toda a vida, capa essa que cobre recordações de um passado em que nos lembramos das coisas boas que tivemos e ficaram pelo caminho. 

Vejamos. Temos ou não saudade dos tempos em que a família ocupava um lugar de destaque e era considerada inatingível? Dos tempos em que se respeitavam valores, não havia tanta competição feroz e era notória a solidariedade entre as pessoas? De quando o reconhecimento e a gratidão eram ponto de honra na sociedade? Ao olhar para os dias de hoje, onde por tudo e por nada se agride, se acusa, se mata e se destrói, não havemos nós de ter saudade dos momentos de paz e felicidade nas nossas vidas?

E no meu setor profissional não haverá razões para ter saudades? Quando havia ainda alguma resposta na saúde e não se verificava a situação caótica a que se chegou? Quando os médicos tinham ‘orgulho em serem médicos’ e faziam da sua vida um sacerdócio? Quando os doentes tinham nome em vez de um número? Quando se trabalhava para o doente e não para indicadores estatísticos? 

Não quero com isto fazer a apologia do passado. Longe disso. É de enaltecer o progresso, os melhoramentos a todos os níveis, os avanços da Ciência que permitem, no meu ramo, curar mais doentes e encarar o prognóstico de certas patologias de forma bem mais animadora, sem esquecer o aumento da esperança de vida, que nunca é demais realçar. Mas uma coisa não invalida a outra e temos que ser isentos e rigorosos nesta avaliação.

As novas gerações têm nas mãos enormes desafios. É preciso lutar pela paz, pela recuperação dos valores que se perderam, pela defesa da família, do Serviço Nacional de Saúde, envolvendo profissionais e utentes nessa restruturação, pelo ensino de qualidade, para que não cheguem aos cursos superiores alunos com médias de vinte valores mas que não sabem o que é uma rubrica (!) e não tenhamos mais tarde licenciados e outros profissionais em lugares de destaque sem saberem escrever nem falar corretamente a língua de Camões!

É, pois, nos jovens que temos de apostar. É nos jovens que é fundamental investir, aqui na sua terra, neste país que precisa deles e conta com eles. Se há uma capa negra de saudade a cobrir o nosso passado, há também uma aurora de esperança a nascer no horizonte que nos alimenta a alma e nos leva a acreditar num amanhã melhor. Em todas as suas fases, a vida tem sempre beleza, encanto, melodia. Citando Teresa de Calcutá, «a vida é um hino, canta-o!».