Comecemos com um cenário hipotético que em tudo poderia ser real: é noite no Walt Disney Concert Hall, em Los Angeles. John Williams, o homem que deu vida ao som do cinema moderno, ergue a batuta com a suavidade de quem conversa com velhos amigos. O público, formado por fãs, críticos e músicos de todas as partes do mundo, aguarda em silêncio. A orquestra começa a tocar os acordes iniciais do tema de Star Wars e a plateia suspira em uníssono, arrebatada por uma música que há décadas guia sonhos e fantasias de gerações.
Williams, com mais de noventa anos, ainda exibe a energia e a paixão de quem começou agora. No entanto, a sua história com a música é longa e intricada, permeada por décadas de dedicação, experiência e, como gosta de dizer, uma «fascinação sem fim pelas possibilidades sonoras». Nascido a 8 de fevereiro de 1932, em Flushing, Queens, Nova Iorque, Williams cresceu numa família de músicos. O seu pai era percussionista de jazz e a sua casa estava sempre cheia de partituras, vinis e instrumentos. «A música era uma constante, algo natural como respirar», já disse em entrevistas, «mas eu não tinha ideia de onde ela me poderia levar».
Aos 16 anos, mudou-se com a família para Los Angeles, onde começou a estudar música formalmente. No início dos anos 50, Williams alistou-se na Força Aérea dos Estados Unidos, onde foi designado para liderar uma banda militar. Essa experiência despertou nele um novo entendimento sobre orquestração e composição. Quando retornou à vida civil, matriculou-se na Universidade da Califórnia, em Los Angeles (UCLA), e também estudou composição com Mario Castelnuovo-Tedesco, compositor conhecido por formar uma geração de músicos de cinema.
Williams-Spielberg, uma dupla de sucesso
Nos anos 60, Williams começou a trabalhar em bandas sonoras para televisão e cinema, acumulando experiência com séries e filmes de pequeno porte. O seu talento logo chamou a atenção e, por isso, foi convidado para compor para grandes produções de Hollywood. Mas o seu grande salto seria em 1974, quando conheceu Steven Spielberg, então um jovem diretor em ascensão. Os dois tornaram-se amigos e parceiros inseparáveis, inaugurando uma das colaborações mais frutíferas da história do cinema.
Spielberg precisava de uma banda sonora para o filme Jaws e Williams criou uma das músicas mais memoráveis e inquietantes do cinema, com um tema minimalista e ameaçador, que remete ao perigo iminente. Este trabalho rendeu a Williams o segundo dos seus cinco Óscares e consolidou a sua reputação. Nos anos seguintes, Williams trabalhou noutras obras-primas: a saga Star Wars, Superman, Indiana Jones e E.T. o Extraterrestre. Cada banda sonora foi um sucesso entre o público e Williams foi responsável por trazer de volta a orquestra sinfónica para o centro da experiência cinematográfica.
As bandas sonoras das nossas vidas
Mas analisemos detalhadamente o seu percurso. No final dos anos 70, criou talvez o tema mais icónico da história do cinema, conhecido como a ‘Marcha Imperial’, associada ao vilão Darth Vader. A banda sonora de Star Wars é um exemplo brilhante do uso de leitmotiv, onde temas específicos representam personagens e elementos da narrativa. A saga como um todo deve muito do seu impacto emocional à música de Williams.
No início dos anos 80, com o tema principal de Indiana Jones, conhecido como ‘The Raiders March’, o compositor e maestro criou uma música cheia de aventura e mistério, que captura a essência do explorador heroico. Este tema define a personagem de Indiana Jones e tornou-se um sinónimo de histórias de aventura no cinema. Em 1993, a banda sonora de Jurassic Park provou que é ao mesmo tempo grandiosa e majestosa, transmitindo a magnitude e o mistério dos dinossauros recriados pelo parque fictício. Williams compôs temas que equilibram o espanto e o perigo que marcam o filme e a música principal tornou-se um dos temas mais amados do cinema.
Para Harry Potter e a Pedra Filosofal, Williams criou o tema ‘Hedwig’s Theme’, que define o universo mágico da série e foi usado em todos os filmes da famosa saga. A música é sinistra e mágica, evocando mistério e aventura, e tornou-se inseparável do mundo de Harry Potter. Já a banda sonora de E.T. é uma das mais emocionantes de Williams, especialmente a música da cena final, quando o rapaz e o extraterrestre se despedem. Foi vencedora de um Óscar e não é de estranhar: a música é repleta de ternura e mistério, captando a amizade e a magia da história de maneira única.
O tema principal de Superman é uma das composições mais heroicas de Williams, capturando perfeitamente o espírito de força e esperança da personagem. Esta banda sonora ajudou a definir o género de filmes de super-heróis.
No âmbito de Jaws, Williams criou um dos temas mais tensos e memoráveis com apenas duas notas repetidas, que se tornaram o sinal de alerta universal para perigo iminente. A música intensificou o terror do filme e foi uma das principais razões para o seu sucesso. Relativamente a Schindler’s List, de 1993, Williams compôs uma banda sonora incrivelmente emotiva para o filme de Steven Spielberg sobre o Holocausto. É dominada por uma melodia de violino solo, interpretada por Itzhak Perlman, que transmite uma tristeza profunda e reverência, e lhe rendeu mais um Óscar.
Embora menos conhecida do que outros dos seus trabalhos, a banda sonora de Hook é um exemplo do talento de Williams para criar temas mágicos e de aventura para filmes de fantasia. A música evoca a sensação de nostalgia e descoberta, alinhando-se com a temática de Peter Pan. Para Memórias de uma Geisha, de 2005, Williams capturou a essência da cultura japonesa através do uso de instrumentos tradicionais e melodias evocativas, resultando numa banda sonora delicada e emocionante que se destaca na sua carreira.
Entre a humildade e a busca pela perfeição
Os seus métodos de trabalho sempre foram específicos. Conhecido pela sua ética incansável, Williams passa semanas imerso em partituras, muitas vezes refazendo temas inteiros até sentir que capturou a essência do filme. No seu estúdio, senta-se ao piano, experimentando variações melódicas, enquanto rascunha ideias em pilhas de cadernos. A banda sonora de Schindler’s List talvez seja o melhor exemplo dessa busca pela profundidade.
No início de fevereiro deste ano, Williams fez um périplo pela sua vida. Em entrevista à Symphony, relembrou as suas primeiras experiências com orquestras, quando acompanhava o seu pai, percussionista na CBS Radio Orchestra, em ensaios nos anos 40. Encantado pelos sons de trombones e trompetes, Williams logo descobriu o amor pelo instrumento que viria a ser uma das suas assinaturas musicais. Ao longo da conversa, Williams partilhou como a prática de conduzir orquestras inicialmente surgiu como uma necessidade prática, já que os diretores musicais dos estúdios nem sempre compreendiam completamente as suas intenções. Essa iniciativa logo o transformou num dos maestros mais requisitados e respeitados da América, especialmente à frente da orquestra Boston Pops, onde exerceu funções como diretor musical por mais de uma década.
Williams descreveu o prazer de ver as suas notas transformarem-se em música ao vivo, especialmente quando regidas por grandes orquestras como a Filarmónica de Viena e a Filarmónica de Berlim. Com a sua habitual humildade, comparou a sua função à de «colocar pontos no papel», atribuindo às orquestras e ao público o papel de dar vida a essa criação. Também mencionou como o seu grande amigo e colaborador de longa data, Steven Spielberg, sempre reconheceu o papel essencial da música orquestral para a narrativa cinematográfica, uma parceria que transformou ambos em ícones.
Williams revelou ainda que, mesmo aposentado da criação de bandas sonoras para cinema, a sua mente não para de compor. Por exemplo, à época, dedicava-se à criação de um concerto para piano para o reconhecido pianista Emanuel Ax, ainda com a paixão e rigor que sempre marcaram o seu processo criativo. Entre reminiscências e novos desafios, Williams fez uma reverência à simplicidade musical de Beethoven e Mozart, reforçando a sua crença no «elemento espiritual» que ilumina a música — algo que, segundo ele, transcende o talento e resulta de um trabalho dedicado e quase divino.
Legado e impacto: uma lenda viva
Com mais de cinquenta anos de carreira, John Williams tornou-se uma figura de reverência. Para muitos críticos, Williams é o último dos grandes compositores de cinema, um artista que trouxe de volta o esplendor da música clássica numa época dominada pela tecnologia e pelo efémero. Tanto que o seu impacto é sentido em gerações de compositores que vieram depois dele, de Hans Zimmer a Michael Giacchino.
Hoje, o seu nome é sinónimo de emoção musical em filmes. No entanto, a sua vida teve momentos de melancolia comparáveis a uma elegia, em especial a tragédia pessoal que antecedeu a sua fase mais criativa e grandiosa. O novo documentário Music by John Williams – que estreia no Disney+ esta sexta-feira, 1 de novembro –, dirigido por Laurent Bouzereau, revisita a transformação de um artista em crise pessoal e profissional para o maestro que redefiniria o cinema.
Nos anos 60, Williams ainda não havia rompido as barreiras da indústria hollywoodiana, batalhando como pianista e compositor de bandas sonoras para séries e filmes menores. A sua vida tomou um rumo trágico em 1974, quando a sua esposa, Barbara Ruick, faleceu de forma repentina enquanto trabalhava num filme. Devastado, o compositor fez um hiato na sua carreira para dedicar-se aos filhos. O documentário revela como a música foi a válvula de escape de Williams, que compôs um concerto para violino em memória de Barbara, a sua primeira obra sem vínculo com o cinema.
O documentário não apenas ilumina a jornada pessoal e profissional de Williams, mas também oferece uma lição de perseverança e dedicação num mundo que valoriza conquistas instantâneas. Bouzereau, através da música, conseguiu abrir as portas da história mais pessoal de um compositor que, mesmo avesso a partilhar as suas dores, ainda encontra no ato de compor o combustível para a sua alma.
John Williams é, afinal, um artista cuja música se tornou a banda sonora das nossas vidas.