Trump, a vitória da democracia

A diabolização de toda a verdadeira oposição supera em muito os totalitarismos do século XX, só faltam de facto os campos de concentração físicos e o extermínio em massa, que não apenas simbólico.

A vitória de Trump é um triunfo da democracia, a qual é o sistema do povo para povo e pelo povo, neste caso contra um tipo de elites, liberais, globalistas e progressistas que vivem num mundo irreal que querem impor à força como alternativa sem outra opção. É também uma vitória contra um tipo de jornalismo que se transformou unicamente em agência de propaganda, praticando o que acusam outros de fazer, ou seja, a manipulação, as fake news, a destruição de carácter e o pensamento único.

Essas elites são as económicas, as financeiras e as culturais e intelectuais e afastaram-se completamente das pessoas comuns e das suas preocupações concretas. Pelo seu poder só aceitam a submissão total das pessoas comuns à sua visão do mundo e aos seus interesses ditados das suas “bolhas” protegidas, e não compreendem que abriram um fosso intransponível entre esse seu mundo irreal e os seus privilégios e a vida da maior parte das pessoas, num mundo destruído pelo consumo e pela erosão dos valores que enraizavam.

A ascensão de políticos e forças políticas não controladas pelo sistema dessas elites compreende-se como uma revolta do homem comum. Um pensador admirável e de esquerda, Philip Lasch identificou esse fenómeno nos anos 90, descrito no seu admirável livro, A Revolta das Elites. E a Traição da Democracia.

Uma nota prévia. Trump não é um ideal de político. Mas há um erro de base, este homem não é a causa da “democracia em perigo”, da “destruição da democracia”, do “ataque à democracia”. Não, ele é uma consequência, um efeito da degradação da política e dos políticos do sistema, que têm corroído a democracia nas últimas décadas e que a venderam aos mercados e ao manicómio do progressismo, desprezando os problemas reais das pessoas em detrimentos de clientelas de nicho.

Está na altura de abandonarmos as ficções e pensarmos a sério no que aconteceu com o desenraizamento gerado em nome das ditas democracias liberais. Simone Weil uma das melhores filósofas da modernidade, explicou-nos porque o enraizamento é uma necessidade fundamental do ser humano. Precisamos de pertencer, de ter laços, vínculos, raízes, uma identidade, um fundo ético, axiológico e social. A ordem, a pertença, os valores perenes, o bem comum, a comunidade são um chão fundamental para não enlouquecermos. Sem esse chão, a liberdade individual, outra necessidade imprescindível, não tem sentido, é puro liberticídio e egoísmo. As sociedades que querem transformar o mundo num supermercado e tudo submetem a uma determinada visão da economia, precisam de destruir todas as resistências que impeçam o homem de se transformar num ser atomizado embriagado com a falsa ideia de liberdade individual ilimitada. Esta última noção está a cargo do progressismo, que tem apresentado como substituição dos valores um conjunto de simulacros manicomiais, a ideia do mundo sem identidade sexual e cultural, sem fronteiras, sem limites, etc. Este quadro reflecte-se na política e nos respetivos funcionários desse poder transnacional que têm apenas de manter a aparência que vivemos em democracia.

O programa de destruição praticado por esse sistema e a incorporação de toda a dissidência foi de tal profundidade que só pessoas com características específicas que lhe conseguem fazer frente. O mundo ocidental atual é uma obra de pura destruição, tudo é economia, amoralidade, corrosão de carácter, destruição do planeta, das comunidades, do sentido, da continuidade histórica, dos grandes valores e exemplos. Os intelectuais, os média e os políticos predominantes são apenas funcionários caricaturais dessa visão do mundo.

A diabolização de toda a verdadeira oposição supera em muito os totalitarismos do século XX, só faltam de facto os campos de concentração físicos e o extermínio em massa, que não apenas simbólico. Veja-se como o sistema, trata as pessoas como crianças idiotizadas e diaboliza os verdadeiros adversários, reduzindo-os a “escumalha” e “ratos”, num mundo onde só existem os muitos bons contra os muitos, mas reais.

O mundo ocidental nos aspetos fundamentais para o ser humano, excetuando a acumulação de objetos, está mesmo em colapso. As alternativas atuais são problemáticas, é necessário emergir outra ideia de mundo, de sociedade, de políticos, de cultura, mas enquanto não surge, ou se não surgir, a resistência, por mais diabolizada, é melhor que este totalitarismo soft que reduziu o mundo a um supermercado e a um manicómio.

As eleições americanas foram a mais recente demonstração programada desse poder sinistro vigente que é pouco democrático. Trump, rotulado como inimigo, foi apresentado pelos média do sistema que recorreram, eles, sim, unicamente a insultos, mentiras e ofensas. A democracia seria perfeita com um candidato único, neste caso, Kamala.

Em Portugal, o papel da SIC e da TVI na diabolização aberrante de Trump raiou o patético e até o cómico. O homem não tem uma única qualidade ou característica positiva, ao contrário da opositora, que era considerada fraca, e depois da traição soez a Biden, surgiu como o bem suprema na face da terra e a vencedora inegável. Os apoiantes do demónio reencarnado eram uma minoria designada como um bando de arruaceiros, ignorantes e facínoras, os miseráveis pobres e homens… Não há um minuto de informação, de objetividade, de rigor, de pensamento critico nestes média.

            É degradante ver ao que pode chegar o jornalismo quando se transforma apenas em mera agência de propaganda ao promovendo uma narrativa tendenciosa que deve ser assimilada como o pensamento único e detentora do bem irrecusável.

O sistema vigente, tendo subsumido todas as orientações partidárias, de socialistas, a conservadores, da esquerda radical, aos sociais-democratas, não está a compreender as irrupções antissistema. E, na verdade, essas irrupções, podem conter de facto propostas muito discutíveis, mas neste momento são a única alternativa necessária.

Nancy Fraser outro nome de esquerda, mas de uma esquerda digna e por isso residual, identificou na perfeição em 2017 o fenómeno Trump (The End od Progressive Neoliberlism, Dissident). A revolta do homem comum: «… esses motins eleitorais compartilham um objetivo comum: são rejeições da globalização corporativa, do neoliberalismo e do sistema político que o promoveu. Em todos os casos, os eleitores estão a dizer “Não!” à combinação letal de austeridade, livre comércio, dívida predatória e trabalho precário e mal pago que caracterizam atualmente o capitalismo financeiro. Os seus votos são uma resposta à crise estrutural dessa forma de capitalismo». A esta tese acrescentamos o uso das bandeiras progressistas, os “idiotas úteis” que promovem a uma exclusão da vida verdadeiramente humana.

Se a oposição aos donos do sistema estava totalmente controlado, e por falta de comparência da esquerda e da verdadeira direita, houve um curto-circuito nesse sistema. Trump e o Brexit, só para citar dois casos, são o exemplo de algo que não estava previsto no guião do sistema liberal progressista. Mas a degradação económica e valorativa das sociedades é tal que as pessoas revoltaram-se e suportam cada vez menos essa ficção liberal progressista, embora a indignação seja reputada de fascista.

Como refere Fraser, a vitória de Trump em 2016, não foi um caso isolado, mas um novo paradigma que não é apenas a revolta contra uma visão económico financeira do mundo que tudo subsume, o neoliberalismo foi rejeitado, mas também o progressismo.

«Na sua forma norte-americana, o neoliberalismo progressista é uma aliança da corrente principal dos novos movimentos sociais (feminismo, antirracismo, multiculturalismo e direitos LGBTQ), por um lado; e altos setores empresariais “simbólicos” e serviços (Wall Street, Silicon Valley e Hollywood), por outro. Nesta aliança, as forças progressistas estão efetivamente unidas às forças do capitalismo cognitivo, especialmente a financeirização. No entanto, involuntariamente, os primeiros emprestam o seu carisma a este último. Ideais como a diversidade e o “empoderamento”, que, em princípio, poderiam servir para fins diferentes, agora servem políticas que devastaram a indústria e o que antes eram as vidas da classe média.»

Fraser atribui a Clinton um papel crucial no desenvolvimento do hiperliberalismo progressista, embora ele tenha origens mais remotas. Se o hiperliberalismo tem a sua matriz atual nos anos oitenta do século XX, que assistiu à normalização das suas teses, foram também Clinton e Blair, um com os “Novos Democratas” outro como “o Novo Trabalhismo” a imporem como doutrina oficial a ligação dessa visão da economia ao progressismo: «Clinton forjou uma nova aliança de empresários, moradores de condomínios, novos movimentos sociais e jovens: todos proclamando orgulhosos a sua autenticidade moderna e progressista, amante da diversidade, multiculturalismo e dos direitos das mulheres. Mesmo quando endossava tais noções progressistas, o governo de Clinton cortejou Wall Street. Passando o controlo da economia para a Goldman Sachs, desregulou o sistema bancário e negociou os acordos de livre comércio que aceleraram a desindustrialização».

Se neoliberalismo e novo progressismo convivem de modo simbiótico, quase perfeito e sem choques, não significa que este último, sob o poder do primeiro, não vá a colocar cada vez mais e maiores exigências e desafios insanos como o aborto até ao nono mês.

O diagnóstico de Fraser acaba por ser um levantamento factual de evidências inegáveis: «…finalmente, o assalto à Previdência foi encoberto por um verniz de carisma emancipatório, fornecido pelos novos movimentos sociais. Durante todos os anos em que se foi a abrir uma cratera após outra na indústria, o país estava animado e entretido numa abordagem de conversa fiada sobre a “diversidade”, “empoderamento” e “não discriminação”. Identificando o “progresso” com a meritocracia em vez de igualdade, com esses termos, equipararam “emancipação” com a ascensão de uma pequena elite de mulheres “talentosas”, minorias e ‘gays’ na hierarquia corporativa numa lógica de “quem vence, fica com tudo”, em vez da abolição desta última.

Este entendimento liberal-individualista do “progresso” substituiu as compreensões mais expansivas, anti-hierárquicas, igualitárias, sensíveis às classes e anticapitalistas da emancipação que floresceram nos anos 60 e 70. Quando a Nova Esquerda diminuiu, a sua crítica estrutural da sociedade capitalista desvaneceu-se, e a mentalidade individualista-liberal tradicional do país reafirmou-se, enquanto as aspirações dos “progressistas” e dos autoproclamados esquerdistas sediciosos contraíram-se. Mas o que fechou o acordo foi a coincidência entre esta evolução e a ascensão do neoliberalismo. Um partido inclinado a liberalizar a economia capitalista encontrou o seu companheiro perfeito no feminismo empresarial focado na “disposição para liderar” no leaning in ou “rachar o teto de vidro”.»

A diversidade, o multiculturalismo, o novo feminismo e os ativismos deviam secundarizar ou mesmo anular as exigências dos trabalhadores, do povo, do homem comum. secundarizada. As redações dos jornais e as universidades dos cursos de caneta e papel e as empresas transnacionais deixaram de compreender o mundo real, as pessoas comuns, a vida concreta. No mundo real, a vida de um ocidental é cada vez mais pobre, insegura e instável.

Como refere Fraser, o Clintonismo teve uma grande parcela de responsabilidade pelo enfraquecimento dos sindicatos, pelo declínio dos salários reais, pela crescente precariedade do trabalho e destruição da família. Os debates sobre diversidade, empoderamento e não discriminação foram engodos para validar o que se passava no mundo dos negócios e do hipercapitalismo demencial, esse mundo global, neutro, o centro comercial e centro de negócios, onde o resto é acessório. Um dos truques foi a substituição da denúncia das desigualdades brutais, pelo credo ilusória da emancipação e pela divisão entre opressores e vítimas culturais. Fraser destaca a ascensão de uma pequena elite altamente ambiciosa e astuta de mulheres, minorias e ‘gays’  talentosos que jogaram e jogam a lógica do “quem ganha leva tudo”. Essas elites são, na verdade, o suprassumo da ideologia liberal libertária e nada têm a ver com discursos marxistas ou esquerdistas radicais sobre desigualdade, seja ela, económica, religiosa, étnica, sexual, etc. Os movimentos de esquerda dos anos 70, estão mortos, a questão agora é outra e bem diferente, não se trata de questões de classe. A nova esquerda no mundo anglo-saxónico, aquele que domina a visão Ocidental, subsumiu-se no projeto da mentalidade liberal individualista e progressista. O resultado foi um “neoliberalismo progressista”, que misturou ideais truncados e deformados de emancipação e formas letais de financeirização. É essa a amálgama a base que os eleitores de Trump rejeitam.