Quando, frente a uma chusma de soldados independentistas venezuelanos, se encheu de revolta, Simón parecia ter crescido pelo menos mais metro e meio, ele que já era alto e magro como um fuso. Depois, com voz forte e canora, fez-se ouvir: «Para nosotros, la Patria es la América; nuestros enemigos, los españoles, nuestra enseñanza, la Independencia y la Libertad!». Corria o dia 14 de Novembro de 1814, Simón Bolívar, El Libertador, tinha 31 anos. De nome completo e fidalgo: Simón José Antonio de la Santísima Trinidad Bolívar Ponte y Palacios Blanco.
Nascera em Caracas, naquilo que os espanhóis chamavam a Capitania General de Venezuela, um distrito colonial do Império. Era de família rica. Mas mestiço. Ou «criollo», como lhe chamavam alguns com o desprezo próprio das raças que se consideram superiores. Os pais morreram era ele ainda menino.Foi para Espanha para ser educado como gente fina. Viveu em Madrid de 1800 a 1802, estudou com afinco a História do Renascimento, casou com María Teresa Josefa Antonia Joaquina Rodríguez del Toro Alayza, natural das Canárias. Ah! Como os Grandes deEspanha gostam de ter nomes infinitos! O casamento durou pouco: oito meses. María Teresa morreu vítima da febre amarela. Simón jurou que não voltaria a casar. Há quem diga que foi nesse preciso momento que decidiu andar por aí a fazer revoluções. E, depois dele, a América Latina jamais foi a mesma.
Numa busca infrutífera de apaziguar a dor, viajou por toda a Europa.Desaguou em Roma em 1805. Deixou escrito que lutaria até ao final dos seus dias contra a colonização violenta e sanguinária dos espanhóis na América Latina. Encontrou aliados, fomentou a insubordinação.E, last but not the least, prometeu acabar com o que restava da escravatura. Seguiram-se seis meses nos Estados Unidos. Acumulava conhecimento e conhecimentos. Dois anos mais tarde estava de regresso à Venezuela e reuniu em seu redor outros fidalgos crioulos e abastados como ele. Pelo caminho, a Espanha tremia com a invasão da Península Ibérica pelos esquadrões de Napoleão Bonaparte que conduziu o seu irmão José ao trono. Fernando VII de Espanha ia mantendo como podia a sua regência num país cortado a meio. O momento parecia de uma oportunidade dificilmente mais propícia. As contrariedades espreitavam, no entanto, escondidas nas esquinas deCaracas…
Entre Março e Julho de 1811, a La Junta Suprema Conservadora de los Derechos de Fernando VII, que governava a região, criou uma série de reformas económicas e elegeu os membros do Congresso que iriam votar a favor ou contra o rei de Espanha. A favor da independência erguia-se a Sociedad Patriótica que contava, além de Bolívar, com gente de muito peso na sociedade de Caracas, casos de Francisco de Miranda, José Félix Ribas ou Miguel José Sanz. No dia 5 de Julho, após um escrutínio renhido, foi declarada a primeira República da Venezuela, comandada por um triunvirato formado por Cristóbal Mendoza, Juan Escalona e Baltasar Padrón. O facto de ter sido a primeira já exige que aceitemos que outras se seguiriam. Era um Estado fraco. Conservador, submisso aos interesses espanhóis, sem a cooperação dos crioulos, hostilizada por todas as províncias que se uniam contra a tirania de Caracas.
Saltemos no tempo. Em 1815, Bolívar tornou pública a Carta da Jamaica, um documento fundamental sobre a estrutura da sua filosofia e do seu planeamento militar. O conceito era, já de si, completamente revolucionário: «Es una idea grandiosa pretender formar de todo l nuevo mundo una sola nación con un solo vínculo que ligue sus partes entre sí y con el todo. Ya que tiene un origen, una lengua, unas costumbres y una religión, debería, por consiguiente, tener un solo gobierno que confederase los diferentes Estados que hayan de formarse». Era igualmente um desafio. Para os que estavam dispostos a segui-lo e contra o Império de Espanha que massacrara os povos indígenas com a brutalidade dos Homens de Ferro de Pizarro. Na sua esperança de uma América unida, ficavam de fora os Estados Unidos (por serem de língua inglesa e de fé maioritariamente protestante), o Haiti (de língua francesa e já adiantado na sua libertação) e o Brasil (de língua Portuguesa e que ainda não proclamara a independência).
Mas a guerra já começara e antecipara-se às palavras. Talvez as balas sejam mais velozes do que o verbo. Em 1810, Simón Bolívar comandava as milícias na Guerra pela Independência da Venezuela. Batia-se contra os soldados reais pela existência da República Venezuelana e pela sedição daquilo que se chamava ProvínciasUnidas da Nova Granada, um território que equivale ao da atual Colômbia. Perante as ambições independentistas, os espanhóis puxaram o lustro à galhofa. Ficou conhecida por La Patria Boba, a Pátria Tonta. Bolívar foi obrigado a render-se. A derrota feriu-o por dentro, amachucou o seu orgulho, mas também serviu para alimentar a sua gigantesca inquietação. As contínuas convulsões em que a jovem República se via envolvida abriram brechas por toda a sociedade. Simón insistia na necessidade de um novo tipo de governação. Percebeu que só o conseguiria pela força dos fuzis. Empurraram-no para o exílio, primeiro em Curaçao e, em seguida, na Jamaica. Chegou a Kingston como um criminoso no dia 14 de Maio de 1815. Escreveu. Escreveu muito. Escreveu sobretudo aos ingleses solicitando o apoio dos comerciantes britânicos que estavam instalados nas Caraíbas. Uma revolução não se faz sem dinheiro. Em Dezembro encontrou-se frente a frente com um pirata de renome: Renato Beluche. Oito dias depois foi vítima de uma tentativa de assassinato. O tiro não varou Simón, mas matou o seu criado particular. Era tempo de partir outra vez. Foi com Beluche que se escapuliu para oHaiti onde fomentou amizade com o homem que libertara essa metade da Ilha deEspaniola da colonização francesa em 1807: Alexandre Sabès Pétion, primeiro presidente da República do Haiti. Generoso, Pétion pôs-lhe ao dispor não apenas dinheiro como armas. Bolívar estava novamente pronto para a guerra. E para uma nova Venezuela.
Um Continente em ebulição
Simón Bolívar fez-se ao mar em Les Cayes, noHaiti, e rumou ao Continente. Um universo de sarilhos pairava sobre os espanhóis. A sua armada dirigiu-se primeiro à lha Margarita controlada por um general republicano aliado, Juan Bautista Arismendi, um daqueles que teve direito a ficar para sempre no Panteão da Venezuela. Já em território venezuelano, Simón lançou um daqueles gritos que ressoam nos corredores da História: declarou a liberdade de todos os escravos e aboliu a pena de morte. O povo estaria, a partir daí, incondicionalmente do seu lado. As escaramuças multiplicavam-se. Avanços e recuos. Faltava sustento financeiro. O Libertador foi obrigado a retornar aoHaiti para assegurar um apoio ainda mais chorudo por parte de Alexandre Sabès Pétion. A sua ausência teve consequências desastrosas: sem voz de comando, os generais republicanos perderam as estribeiras e apoderaram-se de terras em nome individual tornando-se numa espécie de Senhores da Guerra. Algo queBolívar não podia de forma alguma admitir. Apelou à união em seu redor. Desembarcou em Barcelona, no Estado de Anzoátegui e avançou decididamente em direção a Caracas. Foi ainda com um exército dividido que voltou a sentir o sabor da derrota na Batalha de Clarines (9 de Janeiro de 1817). Apesar da superioridade numérica, o general espanhol Francisco Jiménez, aliado da nova República, empurrou os insurrectos até Barcelona, e expulsou-os da cidade. As coisas estavam feias para Simón Bolívar.
Acuado na Guiana, El Libertador recordava com saudade o momento, três anos antes, em que havia capturadoBogotá e subjugado o Estado Libre e Independiente de Cundinamarca, governado pelo Vice-Rei do Novo Reino de Granada. Parecia queTifão, o velho deus grego dos ventos ferozes e violentos, tinha ordenado que eles soprassem contra ele. Enfunou o peito. Não era homem para desistências. Reagrupou as suas gentes. Conseguiu a lealdade dos generais Mariño, Bermúdez, Piar, Rafael Urdaneta e Antonio José de Sucre. A Venezuela estava em pé de guerra. As batalhas multiplicavam-se entre os monárquicos, que combatiam a independência, os situacionistas, que ansiavam manter o poder, e os rebeldes que marchavam atrás do sonho de uma América Latina Unida.
No dia 2 de Janeiro de 1814, Simón Bolívar tornou-se ditador da Segunda República da Venezuela. Parecia um fim, mas era um princípio. No dia 8 deSetembro tinha sido apeado do posto e estava de novo no exílio. A sua vida repetia-se. Em 1817 retomava a sua aura de invencível. E imortal, porque continuava a sobreviver a tentativas de assassinato. No Congresso de Angostura, que decorreu desordenadamente entre Fevereiro e Dezembro, foi proclamada a República da Colômbia, também conhecida por Grande Colômbia, uma nação que compreendia a Nova Granada (atuais Colômbia ePanamá), a Venezuela, e a República de Quito (hoje Equador). Bolívar foi presidente desta união de nações que falava castelhano, o sonho da sua vida, de 1819 a 1830. Entretanto acumulou o cargo com a presidência do Peru independente (de 1824 a 1827). Finalmente, seria presidente da Bolívia (1825), um Estado que nasceu emAgosto desse ano com o nome de República de Bolívar em sua honra já que foi ele que lançou as bases da sua primeira Constituição que a independentizou de Espanha. O grande revolucionário das Américas morreria cinco anos mais tarde. Tinha 47 anos. Mas a sua vida parecia que durara 147.