À porta do Cinema de São Jorge ensaiam-se as reacções de dali a 4 horas, quando todos integrarem a comunhão dos que viram “O Brutalista” (um dos filmes de abertura do LEFFEST, na noite de 8 de Novembro de 2024). Assim se preparam para receber a hóstia, partida em duas metades e consagrada por uma falsa “intermission” (na verdade, uma pausa para cigarro cronometrada). Um épico é antes uma questão de gravidade, e o burburinho não mente: ninguém veio para se remexer e se acabar, e atropelam-se na correria para ver primeiro, pensar primeiro e escrever primeiro, ansiosos por ouvir a própria voz amplificada pela democracia do cinema. Imaginem uma democracia em que todos votam em si próprios amputando todas as propostas de organização e de progresso através dos tempos… “O que achas que vão dizer quando acabar?” “Que o filme nem se sente, embrulhado em tanta suavidade…” Cheguem-se para cima uns dos outros, sintam-se e cheirem-se na ânsia da corrida e sejam todos bem-vindos ao Festival!
****
Luzes. Câmara. Acção: “Nem sequer senti as 3 horas e meia de filme. A duração não se sente!”. “O Brutalista” é um filme fraco, e no entanto não conheço pior insulto do que esse. Não existe numa obra-prima senão o peso da sua duração, e diria mesmo que é tanto melhor quanto mais se possa dizer: durou uma vida inteira. Como muitos destes novos filmes sobre gente grandiosa, que são meros exercícios barrocos de grandiloquência, “O Brutalista” é limpo, tal qual um bloco de mármore de Carrara, e todos os elementos que o sujam são meramente textuais (como “Tàr”, mas não como “There Will Be Blood”, em que as mãos dos homens se mascarram de petróleo e sangue e cujos segredos ainda estão por revelar). É possível entrever a sala de maquilhagem, e a aplicação a Adrien Brody do pó, do carvão e do sangue que podiam contar a sua história (mais evidente só se a “intermission” fosse um travelling pelos bastidores). Seria ofensivo, num mundo ideal, que a história de um sobrevivente do holocausto, de um judeu esfomeado que enfrenta o pesadelo da migração, do racismo, dando depois corpo ao “sonho americano”, mas trazendo agarrada à pele a falência física e do sexo, fosse contada sem um arrepio. Há coisas de que não se prescinde, sob pena de não se sair do campo do “exercício”. Os novos retratos da América são tipicamente pejados de símbolos (importa muito o “simbolismo” como método artístico), mas a “neo-Hollywood” (de que Brady Corbet faz parte) trata os símbolos como o núcleo duro da revelação dos filmes, desistindo da função do argumento. Um símbolo é-o na medida em que possa gerar a dúvida de o ser, e potenciar reflexões contraditórias e valor acrescentado à discussão de um filme. Se ultrapassa a dúvida – pela incapacidade da sua introdução suave nas coordenadas do filme – então ele não é símbolo mas evidência, e cria com o espectador uma relação de estupidificação. Nada é suave em “O Brutalista”: em vez de diálogos (não existe verdadeiro interesse em mostrar os encontros e os desencontros que nascem do confronto entre duas pessoas), são introduzidas provas: da diferença entre um intelectual e um rude, permitindo aos espectadores que se riam na sua cara, derrotando-o em directo (cada membro da audiência imaginando concluir sozinho que “está aqui a origem do trumpismo!”). Poucas coisas devem ser mais frustrantes para um realizador do que ver-se incompreendido por uma sala de 800 pessoas, que imaginam estar a ver um filme sobre a sua própria história (e que anseiam por revelar, nas suas falsas perguntas, que descobriram pormenores únicos sobre o som, os planos, a fotografia e as ligações entre toda a sua obra); porém, é preciso identificar os farsantes, os que se põem a jeito e convocam essa espiral de incompreensão. Brady Corbet é um farsante, embora não com o sentido bonito e com a graça do cinema: a farsa é em si uma evidência e não um símbolo. Ao desistir das maravilhas do simbolismo (e por isso da relação íntima que um filme pode gerar com a sua audiência), Brady Corbet decide dialogar apenas consigo próprio, e não carrega consigo as ferramentas e o génio para tanta solidão: é que apresentar um filme limpo e estéril esteriliza a audiência, e indispõe quem o vê a demonstrar as feridas que faltam a quem o faz. “O Brutalista” é uma empreitada grandiosa e tremendamente falhada de um bruto (que deixa saudades de Clint Eastwood, Michael Cimino, dos velhos contadores de histórias que subtilmente deram palco à revolução…), e a sua exaltação um produto da democratização do cinema, que tem uma relação difícil com as maravilhas do tempo, do seu peso e da sua perdição – irreversível.
****
Foi assim que os mataram, com todos a ver. Impuseram-lhes significados, como outrora propósitos e nomes às coisas. Resta-lhes esperar pacientemente o esquecimento.