Ainda não estavam garantidos oficialmente os 270 votos do Colégio Eleitoral, mas o resultado antevia já uma esmagadora vitória de Donald Trump, e os líderes políticos mundiais apressavam-se a enviar entusiásticas e calorosas mensagens de felicitações e a expressar uma vontade de estreita colaboração.
Os mesmos que, na sua enorme maioria, tinham manifestado os enormes ‘receios’ de que essa opção do eleitorado americano representaria um sério retrocesso para a democracia mundial, para o Estado de Direito, para o combate às alterações climáticas, para os direitos das mulheres, para a liberdade de imprensa, etc., etc.
Para a grande maioria, publicamente ‘apoiantes’ de Kamala Harris, era quase o regresso à Idade da Pedra, ou, pelo menos, ao obscurantismo da Idade Média. Na Europa, acordados estremunhados e sobressaltados com a nova realidade além-Atlântico, assistimos a uma colagem hipócrita ao vencedor! E vão-se empurrar para ficarem mais próximos dele na primeira oportunidade duma foto! Com o tal que, ainda na véspera, encarnava todo o mal! Nada de novo, na verdade. Mais um passo no desacreditar da classe política! Uma pesquisa no Dr. Google do que disseram nos últimos tempos deixará qualquer um estarrecido.
E agora, que esperar do amanhã?
Comecemos pela América. O que é muito relevante porque é tudo o que o importa para Trump: MAGA, ‘Make America Great Again’! Ou ‘America First’! Pouco dado a estudos e leituras, ou tão só a ouvir Conselheiros, mas homem determinado, de fortes convicções, palavroso, espontâneo e impulsivo, intuitivo como poucos, tem uma tarefa enorme à sua frente e a consciência de que quer deixar um legado e, acima de tudo, um novo Partido Republicano. E que, por força da Constituição dos Estados Unidos, só dispõe de um curto mandato de 4 anos para essa transformação. Não tem tempo a perder. Dispõe duma conjuntura política favorável que não ocorria desde Obama, com maiorias no Senado e na Câmara dos Representantes. O povo americano deu-lhe essa maioria porque quer uma mudança radical! Se não tinha votado Kamala Harris, que fingiria que mudaria algo mas para que ficasse tudo na mesma.
Os seus compatriotas confiavam bem mais nele que na sua adversária ‘to fix’ a economia. Que está pior do que nos querem sugerir. Mas o mundo é bem diferente do de há 8 anos! No capítulo económico, as realidades da China, da Índia e doutros países emergentes, em particular da Ásia, não se podem combater apenas com isolacionismo e tarifas aduaneiras. Na economia o perigo são alguns BRICS, mas não a Rússia, que apenas se foca no seu poderio militar, mas que tem vindo a projetar esse poderio nomeadamente em África para se dotar de matérias primas essenciais. Que depois não sabe manufaturar, de que não terá valor acrescentado para a sua economia, mas vai usar para simples chantagem ou para lucro colonialista de ‘trader’.
A Europa será, sem dúvida, um dano colateral dessa nova guerra económica. Temos um modelo social de que não queremos abdicar, e ao mesmo tempo vamos ficando, sem o dizer, também mais protecionistas. O Euro pode sofrer uma desvalorização face ao dólar, e as divisas nacionais dos parceiros europeus fora da moeda única podem ser ainda mais afetadas. A imposição de tarifas alfandegárias às nossas exportações implicará uma reciprocidade que não favorece ninguém, seja produtor ou consumidor. Mas fosse a economia a nossa maior preocupação!
No imediato, é na área política que virá o maior choque frontal entre a União Europeia e os Estados Unidos da América. Putin também conseguiu isso com a invasão da Ucrânia. Custa perceber como Bruxelas e a maioria dos Estados Membros se deixaram levar para a busca duma vitória militar contra Moscovo. Todos os dias somos confrontados com o crescente e trágico número de mortos a chegar aos 50.000 na Guerra em Gaza. Mas ninguém lamenta que já se tenha ultrapassado os mais de 600.000 mortos desde a invasão da Ucrânia. Não interessa falar desta catástrofe humana! O Kremlin não hesita em utilizar “carne para canhão” (que a sua esmagadora máquina panfletária esconde à população) e, quando não há que chegue na longínqua Sibéria, “compra com uns trocos” uns desgraçados norte-coreanos que vêm morrer sem saber onde nem porquê! Do lado de Kiev, morrem outros tantos, soldados e voluntários pela sua Pátria, mais as vítimas dos ataques russos indiscriminados mas propositados sobre zonas residenciais, hospitais ou escolas. E aqui, ao contrário de Gaza ou do Líbano, não há instalações militares e quartéis generais escondidos em instalações civis, nem escudos humanos!
Duvidamos que Trump acabe com a Guerra em 24 horas, nem tão pouco antes da posse a 20 de janeiro. Mas as regras que vai impor serão ultra-dolorosas para a Ucrânia. Ninguém ousava referi-lo no início da invasão russa, mas a sensação era a rápida e total anexação da Ucrânia por Moscovo, com um Governo fantoche estilo bielorrusso. Ou, na melhor das hipóteses, uma Ucrânia Ocidental “independente” e outra Oriental totalmente russa, com o Rio Dnieper a servir de fronteira natural. A Crimeia há muito que estava perdida, com o mundo a olhar para o lado como fizeram também com a Abcásia e a Ossétia. Ainda hoje ninguém soube explicar o porquê desta dualidade de critérios: as duas regiões da Geórgia ficam do lado de lá do Mar Negro mas a Crimeia, no referendo sobre a independência da Ucrânia, votou por 54,19% a favor de aderir ao novo Estado! Num referendo livre não preferiu voltar para a Rússia!
Com a imprescindível ajuda dos Estados Unidos e da União Europeia em equipamento militar e em financiamento do Estado, a coragem e o estoicismo dos Ucranianos ‘limitaram’ as perdas ao Donbass! Mas no dia a seguir à Posse de Trump a torneira de Washington fecha! E a Europa, por muito que queira, não consegue suportar sozinha o apoio de que Kiev necessitaria. Muito longe disso! Nem financeiro, nem em armamento. Aliás convém referir que o “vilão” vai ser Trump, mas foram os Estados Unidos e a Europa que sempre atrasaram a entrega de equipamento militar à Ucrânia, e quando o fizeram tarde e a más horas, não permitiram, até hoje, o seu uso para atingir o território russo. Mas, cuidado, estas semanas pós-eleições americanas são as mais perigosas para um eventual envolvimento ocidental (estamos a tentar não mencionar a NATO mas é disso que se trata) se, finalmente, a autorização para o uso total e a chegada urgente e de mais e melhor armamento ocorrer nestas semanas, antes da posse de Trump.
Convém não esquecer que a responsabilidade desta Guerra é exclusivamente de Putin e do Kremlim. A História vai julgá-lo e às suas ambições imperialistas (ou coloniais) por isso! Ele só atingiu parcialmente os seus intentos, mas o Ocidente perdeu logo nas primeiras horas da invasão quando não impôs uma ‘no fly zone’ nos céus da Ucrânia.
Esperando que este cenário ainda mais catastrófico não ocorra, a Europa vai-se vergar, impotente, às decisões da nova Casa Branca! Bruxelas nem deve ousar protestar, adapta-se à nova realidade. Fingirá, cobardemente, que tem ‘business as usual’ com Washington. Já a opinião pública europeia vai julgar Trump pela dimensão da amputação territorial que venha a ocorrer à pobre Ucrânia. Instigada pelos seus Media, que sempre tentaram esconder a dimensão da tragédia humana destes dolorosos 32 meses, vai demorar a perdoar Trump o ter preferido ‘uma má paz a uma boa ‘
É a lei do mais forte a sobrepor-se à lei internacional. Foi sempre assim ao longo dos séculos, em particular com tiranos e ditadores. É muito fácil falar até se ser confrontado com a realidade de enviar ou não os seus filhos para uma guerra distante. Por muito que se tenha solidariedade e simpatia com a Ucrânia. Por isso a tensão que se viveu na Cimeira de Budapeste da semana passada, com o desespero dos Polacos e dos Bálticos.
A verdade é que não podemos culpar Trump, que ainda nem chegou, pelos erros de Washington e de Bruxelas nos últimos 3 anos! Dos mesmos que não avisaram o Kremlin, antes do 24 de fevereiro de 2022, da linha vermelha que estava a cruzar, os mesmos que esvaziaram as reservas de material de guerra de que dispúnhamos, expondo-nos a uma tremenda vulnerabilidade que não conhecemos desde o fim da Segunda Guerra! Uma irresponsabilidade grotesca! Que, esperemos, não nos venha a sair tragicamente cara.
Em diplomacia é preciso estar atento às entrelinhas, ao peso das palavras: na visita de Borrel a Kiev no sábado, a primeira depois da estrondosa vitória de Trump, a União Europeia mudou drasticamente de ajudaremos a Ucrânia ‘as long as it takes’ para ‘as much as we can’! O ‘que for preciso’ passou a um realista ‘tanto quanto pudermos’! Está tudo dito!
Biden, Scholz, Macron, von der Leyen, todos os outros ‘falcões’, chegou a hora do mea culpa e de assumirem as vossas responsabilidades!
Politólogo