O Natal devia ter outro nome

apologia da ideia de “todas as liberdades”, “todos os direitos”, foram reconduzidas à mercantilização, posso comprar esperma, úteros, mudanças de sexo, crianças, etc., tudo se compra e vende no grande bazar liberal, escudado no mundo livre do progressismo.

A época natalícia é uma das demonstrações factuais mais evidentes para percebemos as principais características da mentalidade, do modo de vida e prioridades ocidentais vigentes.

 A data remete para o simbolismo cristão, embora possamos recuar na origem das festividades desta data a diversas celebrações pagãs acerca da chegada do inverno, culto ao deus sol e significado de um tempo de renovação. Mas o que se impôs no ocidente foi de facto o seu significado cristão, a comemoração do nascimento de Jesus Cristo e respetivo significado de uma esperança e tempo de renovação. O que temos atualmente é o triunfo do hiperconsumismo como a grande lei das sociedades contemporâneas e o horizonte máximo da felicidade individual. Este tempo caracterizado por uma abundância material inédita é paradoxalmente um dos tempos mais pobres no plano espiritual e psicológico e até na consistência das relações entre seres humanos e destes com o mundo. Eis o grande mundo mercado, das sociedades e democracias, mercado e do consumidor feliz.

Um mês antes do dia 25 de dezembro começam os rituais das migrações enlouquecidas às grandes superfícies comerciais, os Black Friday sucessivos, as promoções infinitas e as ofertas de crédito e o endividamento na lógica do compre agora, logo paga. O ato de comprar compulsivamente tornou-se até mais importante que aquilo que se compra, tal como a liberdade de escolha, que nos dizem ser mais importante que aquilo que se escolhe.

Esta fase do já não tão novo liberalismo e capitalismo capturou de modo definitivo a psique humana e expõe uma das ideias mais degradantes sobre o ser humano. O mito da venda da alma ao diabo foi de facto o consumismo. Mais que seres racionais ou animais, somos principalmente seres desejantes. A ideologia que compreendesse os mecanismos do desejo humano teria grandes possibilidades de controlar os humanos, foi o aconteceu, mas de um modo aviltante. O consumo da era liberal deste tempo reproduz intencionalmente, em moldes básicos e empobrecedores, o simulacro da satisfação permanente do desejo, e é da natureza deste nunca ser satisfeita. O que é satisfeito não é a dimensão mais profunda da realização, mas o seu aparato mais superficial, gerando ainda mais dependência e angústia, que é apenas atenuada em cada ciclo de sobre-excitação programada da necessidade de consumir e adquirir.

Se queremos compreender o que é e o sucesso desta etapa do desenvolvimento do capitalismo, como do liberalismo e até do libertarismo, é que estes são principalmente operações sobre o estímulo do desejo e não sobre o autocontrolo e o princípio de limitação, o qual foram as grandes lições dos sábios gregos e medievais e as bases mais fortes das civilizações. Ora, o tipo de desejo suscitado por este tipo de capitalismo que crê no dogma da acumulação infinita de capital gerada em parte pelo consumo ilimitado é uma obra superior de destruição que desconsidera as consequências desse modelo de vida. Até os problemas principais gerados por este modo de vida entram no circuito do consumo. As soluções para os problemas ambientais, por exemplo, não passam de ‘marketing’ de formas mais ousadas de novos tipos de consumo como o verde, o eco, o vegan, etc… A vulgata progressista da emancipação é um grande logro, que encobre o principal, fazer compras ilimitadas e infinitas. Nesta lógica do consumo, o cidadão já não se define pela participação e intervenção na cidade e na vida pública, mas como aquele que tem direito o direito de consumir quanto quiser.

Este novo capitalismo autodesignado como global e do mercado livre, não incide unicamente num novo tipo de lógica de produção e consumo global e na alteração radical do significado do trabalho, é também, um fenómeno total, um modo de conquista profunda da psique de cada indivíduo e do espaço social. O hiperliberalismo tecnológico institui outra ordem, um novo tipo de poder, inédito pela profundidade e alcance. Essa ideologia é principalmente uma técnica de poder total. Essa técnica permite após a destruição das bases do enraizamento do ser humano e da sua dimensão comunitária e social, instaurar a ideia do indivíduo que é superior à ideia de comunidade, a subjetividade ao bem comum, pois já não dependemos uns dos outros, porque somos gestores autónomos da própria vida. Esta ilusão da promessa de uma liberdade ilimitada e da ideia que podemos realizar todos os nossos desejos, através do consumo e do fim da escassez material, foi determinante para a destruição de qualquer interesse pela possibilidade de alternativas mais humanas e realizadoras.

As tecnologias de apropriação da nossa psique desenvolvem um conhecimento cada vez mais eficaz da psicologia das profundezas e da manipulação subtil do condicionamento da perceção, da atenção e do desejo.

A amplitude desta estratégia não incide apenas sobre grupos específicos, mas sobre toda a população. Uma das estratégias mais impactantes consiste na falsa ideia de igualdade através do consumo. Por exemplo, posso não ter poder de comprar para determinadas marcas ou adereços de luxo, mas tenho acesso a uma imitação que posso ostentar, e viver a ilusão da posse de algo a que não tenho acesso.

Veja-se como também sob a invenção e estimulação deste tipo de consumismo unificaram-se todas as diferenças ideológicas e até a ideia de liberdade foi apropriada como consumo. A apologia da ideia de “todas as liberdades”, “todos os direitos”, foram reconduzidas à mercantilização, posso comprar esperma, úteros, mudanças de sexo, crianças, etc., tudo se compra e vende no grande bazar liberal, escudado no mundo livre do progressismo. A crítica aos desenvolvimentos destruidores deste modelo capitalista, que os tem, tornou-se residual, a luta de classes já não existe, uniformizada no consumo, e a preocupação com condições mínimas de dignidades dos seres humanos, sejam económicas e sociais como axiológicas, transformaram-se em paródias. A esquerda já não se interessa com o impacto da alienação da sociedade de consumo, mas sim com a mudança de sexo e a cor dos boletins de vacinas. O liberalismo económico contemporâneo com essas operações absorveu em definitivo qualquer ideia de direita e de esquerda, de verdadeira social-democracia e conservadorismo. Para que se perceba, por exemplo, os desejos individuais que estão transformados em direitos, são uma bandeira de esquerda libertária ou do liberalismo económico? A ideia de liberdade individual ilimitada é o conceito unificador encontrado por esse liberalismo que se quer hegemónico. Essa ideia, por sua vez, é indissociável do primado do subjetivismo e do relativismo. A tecnologia por sua vez garante a promessa de realizar todos os nossos sonhos mais inumanos. Mas este é um tempo imundo. Vários autores referem-se às diversas circunstâncias em que o ser humano se encontrou e praticou monstruosidades inclassificáveis e nesses casos só podemos ter vergonha da nossa espécie perante aquilo que foi capaz de fazer, de se tornar e de se submeter. O facto de nada fazermos por ignorância ou indiferença quando vivemos nesse tipo de situações, significa que somos cúmplices de nos degradarmos e diminuirmos a tal grau.

Deleuze na sua obra O Que é a Filosofia? refere essa condição na propagação dos modos de existência e de pensar para o mercado, sinónimo de uma vida reduzida a uma condição de vulgaridade e baixeza insuportável. Os direitos do homem deviam referir-se também a este tipo de capitalismo e ao modo como uma sociedade não deve pactuar e comprometer-se com esse modo de vida.

Chegamos a um ponto em que só uma mudança radical, a recusa deste modo de vida e uma subversão completa deste sistema geraria transformações significativas. A grande revolução seria sempre a do regresso ao essencial da vida humana e assentaria numa mudança de mentalidades e da recuperação dos valores fundamentais. Não em atos festivos e patéticos como os dos ativismos, mas em ações autónomas, por exemplo, a decisão pessoal de trocar 50% ou mais do que se gasta nesta data para minorar o sofrimento de alguém, não frequentar uma superfície comercial entre novembro e dezembro, não contrair crédito para obter objetos desnecessários e exigir produtos como frigoríficos, computadores, televisões, carros, com o dobro e triplo da durabilidade dos atuais. Outro passo seria a exigência do lucro e impostos justos. Estas pequenas escolhas estariam apenas nas mãos das pessoas que não vivem petrificados perante ecrãs que nos dizem o que é a realidade e a verdade, saciando-nos na satisfação de necessidades inúteis, adestrados para uma apatia total relativamente a qualquer luta ou exigência de uma recuperação de vida autêntica, humana. Em alternativa, não restem dúvidas, que as festividades natalícias são a expressão do deserto da vida do homem médio das sociedades mercado e das democracias de mercado e dos seus embustes progressistas.