Querida avó,
Recordar é viver. A nossa vida, para além de muitas outras coisas, é feita de recordações. Aliás, recordar, é o que mais fazemos na nossa troca de cartas semanais.
Acabo de folhear o belíssimo livro Carmen Dolores – Fotobiografia do Centenário da editora Guerra e Paz. Foi escrito por Rui Veres que o dedicou aos pais, bem como a todos os que preservam a lembrança de quem também foi, nas suas conversas e nos seus livros, uma memorialista empática do seu tempo. E das efémeras artes de palco.
Este livro celebra o centenário da saudosa atriz. Observadora atenta do mundo e de si própria, Carmen Dolores criou no teatro, no cinema, na rádio e na televisão, inúmeras e diversas personagens, fascinada pela complexidade do ser humano, enigma que procurou decifrar com espanto e ternura.
Ao lado de Manuela Maria, Armando Cortez, Raul Solnado, entre outros tantos, foi fundadora da Casa do Artista, obra que, ao longo dos últimos 20 anos, tem acolhido tantas personalidades que merecem ser recordadas.
Quem também celebrava este ano o seu centenário era o ator e realizador Artur Semedo. Recordo-o sempre com luva preta, creio que imposta por indicação médica. É recordado por muito como um símbolo da excentricidade que cultivou na sua intervenção artística e cívica.
As gerações mais novas, daqui a uns anos, podem não recordar a Carmen Dolores, nem o Artur Semedo. Mas irão recordar, certamente, que, por estes dias, em 2024, a Rússia tinha invadido a Ucrânia há mais de 1000 dias.
Irão recordar, também, que no ano em que celebramos os 50 anos de abril, a Assembleia da República decidiu comemorar, pela primeira vez, o 25 de novembro de 1975 em igualdade de circunstâncias com o 25 de Abril de 1974 (pena não ser feriado).
Devíamos recordar mais. Para evitar que a história seja cíclica e que se comentam os erros do passado.
Bjs
Querido neto,
Devemos recordar quem merece!
Para além dos que referes, gostaria de recordar o escritor José Cardoso Pires, que viveu durante muitos anos na Ericeira. A casa, (ao lado da casa onde eu nessa altura vivia), tem uma placa a lembrá-lo. Mas os anos deram cabo da placa, ou seja, as letras já não se veem. Há dias até me disseram que a placa tinha sido retirada – mas isso não posso confirmar e não quero acreditar.
Lembro-me sempre de um dia, eram os meus filhos pequeninos, andávamos na praia, e eles tentavam lançar um papagaio de papel. Mas, de repente, o papagaio ficou preso numas rochas – altíssimas, sobre o mar.
Então, vejo, de repente, o Zé trepar pelas rochas, saltar de umas para as outras, (e eu a pensar “ele vai cair!“) e a conseguir tirar o papagaio, e entregá-lo aos meus filhos, dizendo apenas «aqui o têm».
Quando, muitos anos mais tarde, ele escreveu o seu romance Alexandra Alpha, tive a certeza de que se tinha inspirado nesta “aventura”, na cena em que descreve um anjo a descer dos céus…
Quando falo nisto, vem-me logo à cabeça uma história. Nos anos 20, Hemingway era então um jovem jornalista a fazer pela vida. Para ganhar uns cobres aceitou um trabalho em Toronto: acompanhar nos seus estudos um miúdo americano que lá vivia.
E, durante toda a sua vida, nunca parou de dizer mal de Toronto: gente horrível, vinho horrível, tudo horrível – e não se aguentou lá por muito tempo. Mas, apesar disso, quando vamos a Toronto, só vemos excelentes referências a Hemingway! Um grande hotel com o seu nome, muito bem assinalada a casa em que viveu, etc.
Por acaso eu tive a sorte de ter um guia extraordinário em Toronto, um português que já lá vive há muitos anos, e que me pôs a par de tudo.
Devíamos pensar bem nisso – e exigir a reposição (com as letras bem legíveis), da placa com o nome de José Cardoso Pires, e, por que não, uma rua com o seu nome?.
Bjs