Como interpretar o real que nos rodeia? Talvez a partir do eco da História, do passado como antecâmara exemplar deste nosso presente. Recorro a um texto de Walter Benjamin, Experiência e Indigência e a uma passagem que convém ler e reler: «Sabia-se [no tempo em que os velhos contavam fábulas aos mais novos] muito bem o que era a experiência. […] De forma concisa, com a autoridade da idade, nos provérbios; em termos mais prolixos e com maior loquacidade, nos contos; por vezes através de histórias de países distantes, à lareira, para filhos e netos. Para onde foi tudo isso? Onde é que se encontram ainda pessoas capazes de contar uma história como deve ser? Haverá ainda moribundos que digam palavras tão perduráveis, que passam como um anel de geração em geração? Um provérbio serve hoje para alguma coisa? Quem é que ainda pode lidar com a juventude invocando a sua experiência? Uma coisa é clara: a cotação da experiência baixou, e isso aconteceu com uma geração que fez, em 1914-1918, uma das experiências mais monstruosas da história universal». (in O Anjo da História, trad. João Barrento, Assírio & Alvim, 2010, p. 74).
Estas palavras do grande filósofo alemão (que morreu fugindo dos nazis) servem-nos bem. Ilustram, de modo claro, este terceiro ou quarto capítulo dos últimos cem a cento e vinte anos e que correspondem, grosso modo, ao tempo em que o homem, órfão dos deuses e de Deus, abraçou o Mal, essa potência da diluição, esse projeto caótico de transformar as diferenças em paisagem lisa e limpa, inexistente, informe. Das guerras mundiais a Hiroxima, das guerras por procuração aos genocídios (Ruanda, Sérvia, Palestina), é esse o projeto em curso: a anulação de qualquer espécie de razão no jogo político-económico que é levado a cabo mais pelas grandes empresas e oligopólios (futuros monopólios), do que pelos Estados. Na idade tecnológica a morte já não emociona, o Mal – com maiúscula – é a pulsão da morte, gozo perverso e obsceno justificado pela burocracia infernal e imaginação maquiavélica dos aparelhos da História: censura, doutrinação, fake news, enxurrada de imagens pornográficas que são a fria maquinação demoníaca. Os ‘nativos digitais’, nós todos, presos na rede: o mal é sedutor, político, ficção suprema.
O mal com que nos confrontamos hoje não esquece a tese de Gabriel Marcel: como realidade, o mal é um mistério e como mistério só é possível vencermos o mal se nos pusermos a caminho dele, se formos ao seu encontro. Que mal nos rodeia, hoje – aqui e agora? A turba de desempregados ou de subsidiodependentes? A multidão ululante de adolescentes acéfalos, todos eles formados pelos influencers e filhos de uma nova Hidra – as redes sociais – e cujas cabeças de que se compõe, indestrutíveis, simbolizam os vícios antigos e os novos vícios? O mal como projeto tanto pode ser o regresso do Isis, como pode ser Trump e o desgoverno como único governo possível. As extensões do mal como ‘fenómeno extremo’, na célebre definição de Jean Baudrillard, são, em 2024, difíceis de abarcar – elas lançam-se na infinitude dos espaços virtuais e nas autoestradas ditas ‘do conhecimento’ que, em bom rigor, é um desconhecimento de novo tipo.
De facto, assim como Benjamin perguntou quem tinha, no início do século passado, capacidade para prender um auditório de jovens contando uma boa história, também nós, em 2024, vamos perguntando quem pode hoje galvanizar os portugueses. Perguntam, claro está, os que se perguntam e que serão sempre poucos. A maioria vegeta entre a televisão embrutecedora e um quotidiano sem expectativas. Oscilam entre o Benfica e a crise dos leões, entre a novela dum qualquer Castel-Branco e um processo judicial que se arrasta na lama da burocracia… Cesário Verde, fotografando-nos, escreveu no seu ‘O Sentimento dum Ocidental’: «O populacho diverte-se na lama…». E olhava para as mesas das tabernas onde, por entre fumo do tabaco e álcool, se jogava – a horas mortas – ao dominó da vida.
Num país que lê pouco, que não tem dinheiro para frequentar cultura e cujo ordenado mínimo não chega aos quatro dígitos; no país do falhanço de todas as reformas educativas, feitas para apresentar taxas de sucesso à OCDE, e onde entre quem ensina e quem aprende o pacto está há muito fixado (finge-se que se ensina, finge-se que se aprende e as médias são de um país de génios!), podemos até questionar se o sentido do mal não encerra em si mesmo o sentido do bem. É que, como a realidade dos dias vai mostrando para quem não esteja alienado, os portugueses – traídos por décadas de degradação contínua das classes dirigentes – estão como esses que Walter Benjamin, no seu país e na Europa, via como indigentes. A causa? Talvez esta: «O gigantesco desenvolvimento da técnica levou a que se abatesse sobre as pessoas uma forma de indigência completamente nova. E o reverso desta indigência é a angustiante riqueza de ideias que se difundiu […] sobre as pessoas, com o regresso da astrologia e do ioga, da ‘Christian Science’ e da quiromancia, do vegetarianismo e da gnose, da escolástica e do espiritismo».
Benjamin não se enganou: na Europa que nasceu depois de 1914-18, não há propriamente um renascimento pós-guerra, mas uma galvanização. No caos que surgiu desse tempo, nada nos liga à cultura pré-I Guerra Mundial. É a pobreza da experiência o que vemos cavar fundo as trincheiras da nossa paupérrima Europa: «De que nos serve toda a cultura se não houver uma experiência que nos ligue a ela?», pergunta Benjamin. O que temos, diz, é o espírito hipócrita que simula experiência, fundando uma nova barbárie. Penso, claro está, na responsabilidade das elites europeias atoladas no luxo que tem por alicerces a nossa miséria. O mal alimenta-se dessa barbárie: da tábua-rasa com que se elimina tudo e se promete o Novo.
Um céu de nuvens baixas: o mal no nosso tempo, sinais
Benjamin não se enganou: na Europa que nasceu depois de 1914-18, não há propriamente um renascimento pós-guerra, mas uma galvanização