Uma criancinha que entra numa sala imponente e que tem uma plateia enorme às escuras, um ecrã gigante ao fundo… Essa imagem é mágica. Uma criança que fica sem ar ao entrar na sala. Ficarmos sem ar e sem chão e, de repente, sermos de facto transportados para outro sítio. O Cinema Império era uma nave, um outro universo», lembra o realizador de cinema Frederico Corado, filho de Lauro António. «O que estas salas faziam, além de todo o lado histórico, era sonhar. Não só os filmes que lá passavam, toda a envolvência nos ajudava a sonhar. As salas eram construídas para isso. Não eram apenas caixas como hoje. Toda a ida ao cinema era uma experiência. Aliás, uma sala como esta, que tinha frescos, uma arquitetura extraordinária, toda a sua imponência exterior – com as esferas armilares, as letras fantásticas -, existe por algum motivo», aponta.
Frederico Corado lembra-se bem da «opulência» do edifício. «Era muito grande… Tudo era enorme. Ia com os meus pais ver filmes de grande espetáculo. O Império era o cinema dos filmes de grande espetáculo. Na altura, havia muitas salas para este género de filmes: o Monumental, o Império, o Éden, o São Jorge. No Império passaram Os 10 Mandamentos. Foi lá que estreou o Oliver!, o musical. Vi lá A Guerra das Estrelas. Filmes épicos! Hoje em dia, se nós tivéssemos ecrãs destes para ver filmes que agora são feitos em 3D, seria uma experiência muito mais extraordinária», acrescenta.
Tem mais de 70 anos de existência e foi considerado, durante décadas, uma das mais importantes catedrais do cinema em Lisboa, um marco arquitetónico e cultural, com um legado profundamente enraizado na história do cinema e das artes da capital. «Acompanhava de forma rigorosa o declive da Alameda Afonso Henriques com o desenho da sua imensa escadaria e a enorme fachada envidraçada que permitia, além de colocar o cartaz do filme em exibição, servir de miradouro para o relvado da Alameda», descreve a plataforma digital Museus do Cinema. Com projeto inicial de Cassiano Branco acabou por ser terminado por António Varela, Frederico George e Raul Ramalho e inaugurado em 1952.
As Memórias ficam
A sala de espetáculos – com capacidade para 1676 espetadores -, acolheu o 1.º Festival da Canção em Portugal, onde Simone de Oliveira se estreou em público. Os concertos de figuras internacionais como Count Basie e Quincy Jones, nas décadas de 50 e 60, fizeram história. Foi também no Império que se fundou a Companhia de Teatro Moderno de Lisboa, com atores icónicos como Carmen Dolores, Armando Cortez, Fernando Gusmão e Rogério Paulo. Além disso, o enorme café com o mesmo nome recebeu várias atuações de alguns dos principais artistas da época, como Madalena Iglésias e António Calvário.
«As minhas memórias começam por música e não por cinema. Foi lá que vi o Cliff Richard e The Shadows, em 65. As outras memórias têm a ver com uma série de filmes e eventos… Mas sobretudo com o cinema Estúdio que era um cinema mais pequeno, mas que trazia os grandes clássicos: do Bergman ao Jean-Luc Godard. Muitos dos clássicos que se mexem na nova vaga dos anos 60 e 70», afirma Paulo Trancoso, presidente da Academia Portuguesa de Cinema. O produtor recorda que este era um espaço multicultural, de cinema, teatro e música.
A última sessão comercial ocorreu no último dia do ano de 1983. Quase uma década depois, em 1992, o espaço passaria a servir de templo da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). E os cartazes dos filmes foram substituídos por outros: «Quer sair da depressão?», interroga atualmente um deles.
Agora, parece que o emblemático edifício será desclassificado como equipamento cultural, passando a ser um equipamento para uso religioso. Fala-se também de obras de reestruturação, que, segundo várias entidades, «ameaçam o seu desaparecimento enquanto marco cultural».
De equipamento cultural a religioso
Foi no dia 4 de dezembro que a Câmara Municipal de Lisboa aprovou a proposta de alteração do uso do edifício, passando de equipamento cultural para religioso, com «outras valências complementares», nomeadamente «serviços de administração, de apoio com salas de atividades para crianças e jovens, de formação e reunião e dormitórios para receber funcionários residentes e estudantes», o que pode significar o aumento da área construtiva e da volumetria do edifício. Apenas o Bloco de Esquerda e o PCP ficaram contra.
A intervenção, escreve o Público, «resultará num aumento da superfície de pavimento em 718 metros quadrados, passando dos atuais 4605 para os 5323 metros quadrados», considerando-se por isso uma operação urbanística de «impacto relevante». Haverá alterações na fachada e ao nível dos últimos pisos. As mudanças mais relevantes – propostas pela instituição religiosa -, vão incidir tanto sobre o palco como sobre os envidraçados voltados para a Alameda e para a Almirante Reis.
Esta previsão já havia motivado um parecer negativo por parte da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC), em Novembro de 2023. Uma objeção depois contornada pela entidade que, entretanto, lhe sucedeu, a Património Cultural, Instituto Público (PC). O que não foi aceite pela DGPC terá sido o aproveitamento da caixa de palco para a construção de pisos onde seriam criadas salas de formação e residências. Agora, há algumas condições impostas pela PC, como a conservação das pinturas murais ou a recolocação da palavra ‘Império’ na fachada. Além disso, o Instituto Público quer a conservação e o restauro do painel cerâmico de João Fragoso existente no interior.
Várias contestações
Uma semana depois da reunião, a Academia Portuguesa de Cinema também se pronunciou: «As notícias que nos chegam da sua desclassificação de equipamento cultural para uso religioso e o início de obras que ignoram o seu valor cultural deixam antever mais uma perda irreparável para a cidade. O desaparecimento do Cinema Império é uma ameaça real e alarmante, à semelhança do que já aconteceu com salas icónicas como o Monumental, Condes, Éden, Odeon, Olympia, Europa, Paris, Londres Mundial e Quarteto, apenas para mencionar algumas». «É tempo de exigir a salvaguarda do Cinema Império e de reconhecer o seu papel insubstituível na identidade cultural de Lisboa e do país. Não se trata apenas de salvar um edifício, mas de proteger a memória, a história e o futuro cultural da cidade», frisa.
Horas depois, a mesma APC lançou uma petição pública: ‘Salvemos o Cinema Império’. Neste momento, o documento já ultrapassou as 12 mil assinaturas. «Ficámos muito contentes de perceber que os lisboetas em dois ou três dias corresponderam com mais de 12 mil assinaturas! É porque estão atentos e não querem perder o que já se perdeu continuamente noutros edifícios ligados ao cinema e ao teatro. E foram bastantes! Como é que a Câmara não deita a mão a isto?», lamenta Paulo Trancoso, acrescentando que «é tudo muito confuso». «Não se percebe muito bem o que foi discutido… É preciso muita transparência nestas questões», defende.
Mudança de planos?
Na terça-feira, a Câmara de Lisboa enviou um esclarecimento às redações assegurando que o futuro deste equipamento não está em risco e que a proposta aprovada pela autarquia visa, «essencialmente, legalizar adaptações e ampliações já realizadas no edifício», preservando alguns «símbolos identitários». «O projeto foi acompanhado e mereceu parecer favorável da DGPC/Património Cultural, IP, que impôs, no exterior, a reposição dos símbolos identitários do antigo cinema, designadamente as letras que encimavam a fachada sobre a Alameda e as duas esferas armilares que pontuavam as pilastras no mesmo alçado», explica. «Foi ainda exigido o restauro de acabamentos interiores, pinturas murais, painel cerâmico, boca de cena (palco), cadeiras e luminárias, bem como a reversibilidade das soluções quanto à ocupação da caixa de palco, de modo a salvaguardar o futuro retorno à sua função primitiva», refere ainda a autarquia.
No entanto, tanto Paulo Trancoso como Frederico Corado continuam sem perceber o futuro do edifício. «Não há uma questão clara. O que é que de facto aconteceu? Isso não nos é esclarecido. O edifício foi desqualificado do uso cultural para o uso religioso. Se isso aconteceu, é essencial que volte a ter a qualificação que tinha. Só assim é que se previne que as obras não sejam feitas. Ontem vi no telejornal o engenheiro Carlos Moedas a dizer que vai deixar escrito que têm de ser repostas as esferas armilares, as letras, restaurando os frescos, não tocar no palco, etc. Todas essas coisas que previnem a destruição do cinema. É preciso ter cuidado com a forma como é escrito. Não é impor, nem garantir. É uma obrigatoriedade! Essa palavra é essencial. E depois é preciso acompanhar a obra! É isso que se pede neste momento», apela Frederico.
«Nós não estamos a pedir para que aquilo seja um cinema! Preocupamo-nos com toda a parte relacionada com o edifício. Exteriormente já vemos o que já lá falta… Onde é que estão as esferas armilares? Não sei onde foram parar… O logótipo do Império também desapareceu… Sabe-se lá o que terá variado no interior. Ninguém contesta que o edifício foi comprado e que está lá, mas convém perceber que aquilo é um equipamento cultural! Foi por isso que nos levantámos nesta altura. De repente é um equipamento religioso? Não pode ser! Tem de se preservar a história», sublinha o presidente da Academia Portuguesa de Cinema.
Recorde-se que, nos últimos anos, foram várias as salas de cinema que desapareceram. O caso mais recente é o do Atlântida Cine, em Carcavelos. Já em 2019, fechou o Monumental, no Saldanha. Em 2014, o Cinema Londres transformou-se num bazar chinês. O Fonte Nova, em Benfica, encerrou em 2015. Dois anos antes, a cidade já tinha dito adeus ao Cinema King, em Alvalade, entretanto colocado à venda. O Cinema Roma neste momento é o Fórum Roma, onde é a Assembleia Municipal e o Cinema Alvalade – depois de ter passado a local de culto -, voltou a reabrir, mas não como antes. Neste momento tem apenas quatro salas.