Portugal truncado

Após o 25/Abril sobrou muito Estado enfeitado de República e há um pouco de país que, entretanto, vai ardendo enquanto se despovoa.

Soltam-se às vezes da tenra infância memórias incertas das quais a fantasia refaz imagens difusas. Por exemplo, eu guardo um raro episódio em que a minha Mãe, muito serena, com um vestido de rosas estampadas está em pé sobre uma caixa de madeira numa sala inundada, facto comprovado por terceiros, mas com um senão: minha Mãe estava grávida de mim! Confusão mental mais grave só a de um rapaz meu vizinho, não sei se satírico se louco esquizofrénico, a gritar aflito por socorro do fundo da escuridão completa de um estábulo: «Ó Pai, traga lá a candeia, não sei se a mula deu um coice em mim, se na parede!». Há cérberos abrasados sem que a realidade lhes acuda.

Vem isto a propósito do fenómeno meio psicótico, meio aldrabão, que amiúde presenciei imediatamente a seguir ao 25/Abril: muita gente honesta jurava o seu passado antifascista de sempre enquanto eu, abismado, ficava sem saber se haviam sido aquelas pessoas a fazerem o 25/Abril, se fora este a recriar o antifascismo delas. Não dariam pelo seu necessário ponto de inflexão, pela rutura interior? Mentiam? Afinal a mula dera um coice em quem? Se não mentiam o diagnóstico só piorava, sobrava uma consciência anestesiada em debilidade mental ou uma ilusão geral de amplitude social. Deu-se após o 25/Abril uma espécie de esquizofrenia ora manipulada, ora auto-hipnotizada, enquanto daí até hoje Portugal se viu truncado da sua realidade essencial e histórica, ameaçado existencialmente. Vejamos.

O Portugal de nove séculos é uma unidade com realidades diferentes, complementares entre si e em harmonia hierárquica. No nível inferior somos um Estado, ou seja, instituições articuladas que se organizam para efetivar o Direito, a Lei assegura e defende, também acusa e vigora; esse organigrama ordena a realidade das pessoas em República, a coisa (res)pública (igual em monarquia) pela qual os vários poderes tratam do património geral e o dispõem em serviço público, equilibrando bens coletivos e interesses privados. O Estado e a República são conceitos abstratos de estruturas, sínteses que se adaptam ao concreto situado, ou seja, ao país, à paisagem e aos paisanos, no caso, a este nosso extremo ocidente da Europa ‘onde a terra acaba e o mar começa’, lugar existencial onde a História nos deu à luz. A História fez-nos Nação em similar ideia comunitária de família, ancestralidade contínua dos que nascem e se sentem portugueses, desde os ‘egrégios avós’ até hoje; a Pátria, cume superior, está para lá de tudo isto e tudo isto contém, é uma entidade transcendente, se quisermos, um ser espiritual vivo e agente, é mesmo o que mais age em altura e profundidade, caso não a neguem ou a estiolem como há cinco décadas acontece. Podem haver ministros de Estado, Presidente da República ou Rei da Nação, mas na Pátria ninguém manda, só ela guia se invocada por personalidades de génio, por heróis ou por santos. O atual regime negou a Pátria Portuguesa e ela hoje parece estéril, aceita calada que esqueçam Camões e se envergonhem dos Descobrimentos. Assim fazem as Mães quando esquecidas e, no entanto, de pé persistem ocultas, quais stabat mater.

Após o 25/Abril sobrou muito Estado enfeitado de República e há um pouco de país que, entretanto, vai ardendo enquanto se despovoa. A Nação e a Pátria de nove séculos foram exiladas num cisma doloroso, feridas por mutilações que se demonstram na língua mãe maltratada por elites governantes que a parecem desprezar, sem um rasgo de amor que se veja, exibindo tão só um pedante linguajar em inglês globalista. Cavaco não sabia nem quis saber quantos cantos têm Os Lusíadas, a Sócrates Pinho sugeriu-lhe levar o seu bad english à Universidade de Colúmbia, António Costa acha que devemos falar com sotaque brasileiro, há semanas um ministro no Parlamento soltou um póssamos e o primeiro-ministro por três vezes no Pontal gritou será-lhes pago. «Ó Pai», candeia para quê? Acho mesmo que a mula deu um coice em nós. E não foi pequeno!