Em Setembro de 1931, Mohandas Karamchand Gandhi, a Grande Alma, desembarcou no Reino Unido vindo de Bombaim. Agora chamam-lhe Mumbai, mas pouco importa para o caso. Houve espalhafato. Estamos a falar do homem que mais contribuiu para a dispersão do Império Britânico, o tal no qual o sol nunca se punha. Ficou até Dezembro para irritação de muitos dos governantes ingleses, mas foi bem recebido pelo povo. Afinal o povo costuma gostar de coisas simples e não terão havido tantos homens tão simples como Gandhi na História da Humanidade, pondo de parte o grego Diógenes que vivia num barril e se vestia ainda pior do que o Mahatma, se é que conseguem imaginar a coisa. Quem se abespinhou mais com a visita de Gandhi foi Winston Churchill. No ano anterior, mal soube das intenções do independentista indiano, questionou-a na Câmara dos Comuns, perguntando qual o interesse de receber com honras de Estado um «half-naked fakir». A história do «half-naked» vale o que vale. De facto Gandhi não usava mais do que um pano tecido por si próprio em redor da cintura e uns chinelos. Isso na Índia, onde faz calor. De Setembro a Dezembro a Grande Ilha que fica para lá da Mancha não prima pela candura do clima, e Gandhi-ji (ji é um termo que se aplica em hindu na sequência do nome de forma a exibir respeito) reforçou o guarda-roupa com uma espécie de cobertor à volta dos ombros. Não era nenhum idiota, como todos sabemos. Era até um indivíduo com um fino sentido de humor. Quando lhe perguntaram se iria apresentar-se na audiência com o rei Jorge V assim mesmo, «half-naked», respondeu: «Sim. Aliás o rei usará certamente roupa suficiente para nós dois». Está provado que o sentido de humor, ainda por cima afiado como um X-acto, está ligado de fonte direta à inteligência. E assim sendo, na verdade o insulto residia no «fakir». Churchill foi um belicista, andou envolvido em guerras toda a vida, ou pelo menos a maior parte dela, e desprezava a filosofia da não-violência traçada pelo indiano. Quis, com esse epíteto apoucá-la como se fosse um truque de fazer erguer cobras com uma flauta ou deitar-se numa cama de pregos. Teve azar. O fakir alimentou a curiosidade dos britânicos. E foi recebido com festarolas por toda a parte.
Claro que não era a primeira vez que Gandhi visitava a Grã-Bretanha, afinal foi lá que viveu e estudou na sua juventude, depois de muito teimar com a mãe, Putlibai, e com a mulher, Kasturba Gokuldas Kapadia, com a qual casara apenas com treze anos (ela tinha catorze). Conta a lenda que só foi autorizado a deixar a Índia depois de jurar solenemente que se absteria de álcool, carne e mulheres, o que para muitos ocidentais incivilizados é mais ou menos a mesma coisa. No dia 10 de Agosto de 1888, deixou Porbandar, a sua cidade natal, no Gujarate, e viajou até Bombaim. Tinha 18 anos. Daí, a 4 de Setembro, navegou para Londres onde estudou Direito no University College e, finalmente no Inns of Court School of Law, tornando-se um «barrister», aquilo que os ingleses chamam a um advogado de barra. Convencidos de que a vida em Londres lhe corromperia o sentido religioso hindu, os seus companheiro de casta, a Modh Bania (que se pode traduzir por proprietários ou comerciantes de boas maneiras) trataram de o expulsar. Começava a perceber que pensar pela própria cabeça podia ter custos bastante altos.
Mas deixemos a juventude de Gandhi porque não é ela que aqui nos traz, e voltemos à prostituta inglesa, ou seja, à vaca fria. Como já salientei aí algures, o homenzinho de chanatos alimentou a curiosidade latente dos ingleses menos snobes, e basta sair de Londres que encontramos muito desse género. Primeiro porque insistiu em viajar em segunda classe e em instalar-se nos locais menos aceitáveis para o tal grupo de snobes em que a vila Britânia é fértil. Referem as reportagens da época que teimou mesmo em dormir num terraço do West End. Na sua forma de pensar, quanto mais mergulhasse na pobreza mais perto estaria de compreender os humildes camponeses que decidiu visitar a norte da ilha. Os camponeses trataram-no como um deles.
Entretanto, em Portugal
Não julguem que a visita de Gandhi ao Reino Unido se resumiu ao interesse dos ingleses. Por exemplo, no dia 1 de Setembro de 1931, o Diário de Lisboa abria a sua primeira página com um título gigante: «GANDHI». Em forma de editorial, avançava um texto com o seu quê de altivo: «Não possui a imponência ou a majestade que a estatuária clássica escolheria para as atitudes e movimentos da oratória e do orgulho; Gandhi apaga-se, humilha-se, recalca-se no ser próprio de ser, afasta de si o clamor das turbas e volta as costas às multidões quando estas o aplaudem».
Ah! Como sopram desacertados os ventos da História. Trinta anos mais tarde, com a invasão da chamada Índia Portuguesa pela União Indiana, Gandhi e Nehru, o pandita, passaram a ser figuras odiosas do regime de Salazar, apesar de o primeiro já estar morto e incinerado. Mas nesse final de Outono de 1931, era apenas um problema dos ingleses e nós parecíamos gozar o prato do embaraço que o Mahatma lhes provocava. Se não, leiam: «Fisicamente, perante os olhos de um europeu habituado a julgar as almas pelas simples aparências, parece confundir-se, sumir-se na insignificância das coisas que o rodeiam. No entanto, a sua força moral é enorme, o seu poder de persuasão inexcedível, a sua palavra desataviada, mas de uma sinceridade absoluta, move montanhas. Uma inglesa que o viu no vão de uma porta, disse: “Tive a impressão de que estava perante um barro mais caricatural que humano. Assim que lhe pude falar, a sua voz límpida de um timbre delicioso, produziu imediatamente a atmosfera das conversões. Fiquei para sempre sob o seu império”».
O endeusamento do homem simples. O fakir batia Churchill no seu próprio campo de batalha. Tornara-se numa figura de universalidade inquestionável, movia consigo, fosse para onde fosse, as montanhas da curiosidade e do fascínio.
Teimou e foi ao Lancashire, o Condado do trabalho. Das cidades industriais de Burnley, Bolton, Blackburn, da grande Manchester, da portuária Liverpool, coração operário da Inglaterra, centro da produção de lanifícios. Visitar o povo onde morava o povo. Falou aos trabalhadores: «Vocês têm cerca de três milhões de desempregados, mas nós temos trezentos milhões de desempregados. A contrapartida que vos dão pelo desemprego é de dezassete shillings por mês. Os nossos desempregados recebem sete shillings por mês». As palavras faziam eco. As massas escutavam-no e questionavam-no. Mesmo as figuras mais notáveis da sociedade britânica quiseram conhecê-lo: George Bernard Shaw, Charlie Chaplin… Bem podiam os governantes sentirem-se incomodados. A voz de Gandhi falava mais alto do que a deles.
O impaciente Winston deitava fumo pelas narinas. O maldito do fakir meio nu surgia-lhe do tamanho de Gog e de Magog juntos. «Considero toda esta farsa nauseante!», afirmou. «Acho inadmissível que este fakir do Oriente converse em condições de igualdade com o nosso Rei-Imperador!».
O Rei-Imperador tinha outra opinião. Fez questão de receber Mohandas Gandhi no Palácio de Buckingham. Foi um ver se te avias. Os responsáveis pelo protocolo levaram a sério a tal figura meio despida que iria entrar oficialmente pelos portões reais. Mas nada faria Gandhi voltar a vestir um fato, como o tinha feito nos seus tempos de estudante em Londres e de advogado na África do Sul. Os seus chinelos tornaram-se audíveis à medida que percorria os corredores. Jorge V usava umas calças às riscas e um casaco matinal. A rainha brilhava de prata. Eduardo, o herdeiro, viajara propositadamente de Liverpool e vestia uma farpela igual à do pai. Lord Chamberlain surgia à cabeça de quinhentos convidados, muitos deles marajás resplandecentes nas suas túnicas e joias. «Mahatma Gandhi», anunciou Chamberlain. A figurinha esquelética de canelas à mostra dirigiu-se ao rei e cumprimentou-o com um rijo «shake hands». Depois recuou um passo e inclinou a cabeça com as palmas das mãos unidas na habitual saudação hindu: «Namasté». Em seguida, os dois homens reuniram-se num estúdio. O rei bebeu uma chávena de chá e Gandhi uma tigela de leite de cabra. Não era a primeira vez que estavam frente a frente: trinta anos anos antes, o Mahatma, assistira como dr. M.K. Gandhi, advogado, a uma receção à comunidade indiana de Durban dada pelos que eram, à altura, o duque e a duquesa de York. Repetiu o gesto de ser o primeiro a abandonar a cerimónia. Murmurou para os jornalistas que o rodearam: «Personally I have very little time for social functions. Both Their Majesties were charming. I also liked the Prince of Wales». Depois perguntaram-lhe: «O rei deu-lhe algum encorajamento para a sua luta por uma Índia independente?» Ao que ele respondeu: «Só Deus dá encorajamento, não reis». E terminou: «Limitámo-nos a trocar amabilidades. Não seria digno da minha parte tornar públicas as nossas conversas. Direi que discuti mais o efeito do clima sobre os seres humanos do que alguma vez o fiz na Índia». Quem quisesse que lhe lesse os sentimentos nas entrelinhas.
Em Portugal, escrevia-se mais sobre o fakir do que sobre o rei. O exotismo continua a ser irresistível: «Com os seus vastos óculos, por detrás dos quais a vista espreita o mundo e os seus embustes, a fronte cortada de inquietações e de sulcos, a ossatura da face a desenhar-se sob o ligeiro tecido muscular, o grande nariz ensombrado e assombrado – ostenta duas rugas firmes entre as vigorosas sobrancelhas e mostra, na boca um tanto aberta, o lábio inferior ligeiramente descaído, um vago esplendor de alegria celestial. É bastante culto, pois formou-se nas faculdades inglesas, onde conquistou altas classificações. Mas prefere a inspiração ao raciocínio. Quando tem de tomar uma resolução decisiva em matéria difícil, fecha-se num mutismo total, desprende-se dos cuidados vulgares, introspecciona-se e, por fim, mostra-se aos seus discípulos cheio de júbilo como um mergulhador que vem do fundo do mar e traz na mão uma pérola sem rival». Poéticas palavras. Mas pouco práticas. Na verdade, a viagem de Gandhi a Inglaterra nesse fim de ano de 1931, acabou por ser mais folclórica do que produtiva. A questão central da independência da Índia seria atirada para as calendas. Chegou a II Grande Guerra e, só em 1947, a liberdade surgiu à meia-noite.