Li Paris é uma Festa adolescente, na tradução portuguesa, quando devorava os livros da biblioteca de casa dos meus pais. Obviamente, não entendi o livro, mas muitas das histórias e figuras ficaram comigo para sempre. A biografia e a obra de Hemingway, bem como a Lost Generation, sempre me atraíram, mesmo com as evidentes distâncias políticas.
Tantos anos depois, a curiosidade bibliográfica levou-me a A Moveable Feast: The Restored Edition, uma edição feita pelo neto de Hemingway e prefaciada pelo seu filho, que pretende chegar ao livro como o autor o queria publicar. Apesar das diferenças da edição de Mary Hemingway, publicada postumamente, em 1964, a originalidade é sempre discutível. Polémicas à parte, esta versão é um deleite bibliófilo; maior e com um apêndice de fragmentos, além de ilustrada com manuscritos e fotografias da época, torna-se um objecto de estudo e comparação. Até porque este foi o último manuscrito em que Hemingway trabalhou, sem o concluir, antes da sua morte, em 1961.
A Moveable Feast é uma «colecção de postais» sobre a Paris em que Hemingway viveu com a primeira mulher e o primeiro filho, nos anos 20 do século passado. É curioso ver um jovem Ernest tímido ao falar com Sylvia Beach, a dona da Shakespeare & Co., ou a formar o seu estilo de escrita, com os conselhos autoritários de Gertrude Stein. Mais interessante é todo o círculo literário em que se move, com o genial Ezra Pound à cabeça, o seu grande amigo F. Scott Fitzgerald, além de Ford Madox Ford e James Joyce, entre tantos outros, como Hilaire Belloc ou Wyndham Lewis.
Não sei se foi aqui que pela primeira vez li o nome do Pound por quem nunca perderia a paixão, mas é ele o protagonista de um episódio que me ficou gravado na memória. Hemingway deu aulas de boxe a Pound, a pedido deste, e descreve um desses treinos de golpes básicos em que prudentemente evita atingi-lo. Ao relatar esse encontro, Noel Stock, no seu The Life of Ezra Pound, diz que «Pound lia os manuscritos de Hemingway e dava-lhe conselhos sobre como livrar-se de palavras supérfluas». Além de me fascinar que dois gigantes das letras se dedicassem igualmente a uma arte marcial, regozijei-me por descobrir com quem Hemingway aprendera o less is more pelo qual ficaria tão conhecido.
Apesar de acabarem em campos ideológicos diametralmente opostos e mesmo com as terríveis reacções de Hemingway face ao apoio de Pound a Mussolini e ao fascismo, a verdade é que a amizade nunca desapareceu.
Em 1954, ano em que recebeu o Nobel, Hemingway afirmou que o prémio mais valia ter sido atribuído a Pound do que a ele próprio. Quando questionado sobre a detenção de Pound, internado no Hospital psiquiátrico de St. Elizabeths depois de ter sido condenado por traição após a Segunda Guerra Mundial, Hemingway respondeu que «este seria um bom ano para libertar poetas».
De facto, Hemingway lutou até ao final pela libertação de Pound, que só aconteceria em 1958. O poeta regressou prontamente a Itália e Hemingway, para ajudar o mestre e amigo, enviou-lhe um cheque de mil dólares. Pound escreveu a Hemingway a agradecer, dizendo que não precisava do dinheiro, mas que ia guardar o cheque para a posteridade. Mais tarde, escreveu-lhe a convidá-lo para o visitar no Castelo de Brunnenburg, no Tirol do Sul, local onde Ezra Pound terminou o seu monumental The Cantos. Os dias agitados da capital francesa eram um passado distante, mas a velha amizade não perdera a chama.
Em A Moveable Feast, comum aos relatos de peripécias e coscuvilhices, é um verdadeiro roteiro gastronómico que se vai desenvolvendo ao longo do livro, de pratos, bebidas, cafés e restaurantes da época. Reencontrar locais e autores é talvez o maior prazer desta leitura e Paris é mesmo um festim que fica connosco.
Há uns anos, um amigo disse-me, com toda a certeza, que Hemingway se lê em novo e em velho. Nem o benefício da dúvida lhe concedi, mas agora tenho de dar a mão à palmatória…