A piteira matou Piteira na história do Trio dos Ossos

Hélvio fumava como um tubo de escape e era fininho, fininho, de osso bater com osso.

Piteira: em brasileiro é boquilha. Hélvio Pessanha Moreira era um furioso fumador e usava piteira. O povão não perdoou: passou a chamar-lhe Hélvio Piteira. Na verdade o próprio Hélvio, finguelinhas, de canelas finas, quase estaladiças, meias sempre em baixo, num molhe por cima das chuteiras, tinha algo de piteira na figura. Era Piteira e ficava-lhe bem. Em garoto, vindo lá do Bairro de Humaitá, em Niterói, (diacho que agora me lembrei do Humaitá, que jogou no FC Porto!), fazia de tudo como as mulheres a dias do antigamente. Isto é, começou a lavar roupa como ponta-esquerda de uma equipa amadora da rua onde morava, depois varreu o chão como volante, ou trinco, se preferirem, até se instalar como defesa-central, assim tomando conta do quintal das traseiras onde não passava nem passarinho, que é bicho de passar, se não não lhe tinham dado esse nome. Trabalhou para o Ministério da Marinha e ser profissional de futebol nunca lhe mereceu um pingo de interesse até chegar o Fluminense em 1944, batendo o pé da insistência e obrigar Piteira encolher os ombros e dizer que sim. Tinha vinte anos. Nascera no Campo dos Goycatazes no dia 20 de janeiro de 1924. Sujeito pacato de não se meter em encrencas. O mundo todo à sua frente. Aliás, o único que ficava atrás dele era o guarda-redes, pois então. Juntou-se, com a camisola tricolor vestida, a dois outros defesas, Mirim (que se chamava de verdade Valdemiro Teixeira) e um tal Ponce de León, com a sonoridade de fidalgo espanhol do tempo em que Pizarro caçava Atahualpa Yupangi no Vale do Urubamba, com uma sede devoradora do ouro dos incas. Os três juntos pareciam um. Eram tão, tão magros, que ficaram conhecidos por Trio de Ossos. De cada vez que entravam em campo era como se ouvíssemos um chocalhar de esqueletos igual ao do Comboio Fantasma da Feira Popular da minha infância. Mas eram ossos rijos, tenham lá calma. Sobretudo os das canelas calejadas de Hélvio Piteira. Chico Formiga, que jogou com ele no Santos, que o comprou ao Fluminense por 150 mil cruzeiros em 1949, dizia que Hélvio, «apesar dos caniços finos, sempre foi um defensor implacável no desarme e quase imbatível nas disputas pelo alto». Eram tempos do catano, e não há que ter medo da palavra. Do catano, meus amigos! Vejam só como entraram em campo as equipas do Olaria e do Fluminense no dia em que, com uma exibição francamente intolerável por parte de Piteira, os das Laranjeiras venceram por 8-2. Olaria: Zezinho; Leleco e Lamparina; Valter, Cláudio e Ananias; Alcino, Cidinho, Baiano, Zoé e Esquerdinha. Fuminense: Tarzan; Pé de Valsa e Hélvio Piteira; Índio, Mirim e Bigode; 109, Maneco, Simões, Orlando e Rodrigues. Convenhamos: com estes vinte e dois em campo quase era possível escrever um romance machadiano, do género das Memórias Póstumas de Brás Cubas ou coisa assim. Eu, por mim, pegava nos nomes de todos e escrevia-os para sempre na parede branca da memória. Lamparina? Zoé? Pé de Valsa? Brincadeira. Como diria Nelson Rodrigues depois de ver umas fintas do Garrincha: «Isso aí não existe!». E 109??? Há lá nome melhor para um ponta-direita do que 109???!!! Nem 115. E 115 tinha de jogar no meio, nos serviços de urgência que afastavam perigos e assustavam defesas. Defesas é como quem diz. Não assustavam o Piteira. Nos jornais da época gabava-se a sua capacidade de ser ‘sem-pulo’. Eu explico: ’sem-pulo’ porque era tão mais rápido que os avançados contrários e tão mais alto do que a maioria deles que, muitas vezes, despachava os lances pelo ar sem tirar os pés do chão. Nas bancadas, a populaça delirava. E gritava: «Sem-pulo! Sem-pulo! Sem-pulo!». Logo a seguir, Hélvio contrariava a voz do povo e, de repente, voava como um albatroz de asas aguçadas, os braços também fininhos, toda a ossatura tão leve que desobedecia à Lei da Gravidade. Muitas vezes jogava de barrete na cabeça. Barrete tricolor que o destacava no meio de todos os outros, como se isso fosse preciso. Depois, a piteira matou Hélvio Piteira. Fumava como um tubo de escape, apanhou cancro na garganta. Aos 60 anos, um ataque de tosse levou-o até ao céu como se fosse uma nuvem passageira…