A águas com Eça

Eça de Queirós, que se debateu com frequentes crises gastrointestinais, era perito em águas

Os excessos alimentares e etílicos, típicos das festividades que acabámos de viver, tendem a aumentar-nos a apetência por águas minerais. Eça de Queirós, que se debateu com frequentes crises gastrointestinais, era perito em águas. Não tendo os prazeres da mesa escapado ao realismo e à mordacidade da sua pena – pense-se no jantar que, n’Os Maias, João da Ega oferece em honra de Cohen no Hotel Central, ou no banquete d’A Capital, no Hotel Universal, pelo qual Artur paga, com «lágrimas de raiva», «vinte e duas libras!» – é natural que na sua obra também se encontrem referências a inúmeras águas minerais: «E de águas havia sempre no Jasmineiro um luxo redundante – águas geladas, águas carbonatadas, águas esterilizadas, águas gasosas, águas de sais, águas minerais, outras ainda, em garrafas sérias, com tratados terapêuticos impressos no rótulo…», escreve Eça no conto Civilização. Com pequenas variações, repetiria a descrição n’A Cidade e as Serras, romance onde surge ainda: «Ó Jacinto! E as águas carbonatadas? E as fosfatadas? E as esterilizadas? E as sódicas?»; «Água de Evian… Não, de Bussang! Bem, de Evian e de Bussang!». Para além destas duas marcas francesas, símbolos de estatuto social, destaca-se também uma marca alemã (na foto): «Tornou-se então muito afável com Artur; ofereceu-lhe da sua água Apollinaris para misturar com o vinho» (A Capital).
A época de Eça coincidiu com o desenvolvimento da hidroterapia, ou seja, a cura de doenças com águas termais, segundo a especificidade da sua composição química. Para esse efeito, valeram os avanços da química analítica e, a partir de meados do século XIX, o estabelecimento de critérios físico-químicos e biológicos para avaliar a potabilidade das águas e os seus efeitos terapêuticos. Entre os químicos que analisaram as águas nacionais, destacaram-se Agostinho Vicente Lourenço (1826-1893) e António Ferreira da Silva (1853-1923). Este último fundou e dirigiu o Laboratório Químico Municipal do Porto, bem como a Sociedade Portuguesa de Química. Ramalho Ortigão, que coescreveu com Eça O Mistério da Estrada de Sintra, foi autor de Banhos de Caldas e Águas Minerais, um roteiro descritivo das várias estações termais do país.
Relativamente às águas nacionais, Eça exaltou as virtudes da de Vidago, que, tendo alcançado estatuto medicinal, era, na época, adquirida nas farmácias. Cita-a, por exemplo, n’A Relíquia: «um cavalheiro, de colete de veludo negro, veio ocupar o talher fronteiro, junto de uma garrafa de água de Vidago, de uma caixa de pílulas e de um número da Nação» e «O Senhor Lino ofereceu-me da sua água de Vidago – e conversamos das terras da Escritura», assim como n’A Ilustre Casa de Ramires: «Sim, filha, combalido. E há dias mais pesado, desde o tal cabrito no espeto e da companhia beberrona do Manuel Duarte. Tu tens cá água de Vidago?».
As águas gasosas ricas em bicarbonato atuam como antiácido, neutralizando o ácido clorídrico gástrico. Os sais de fruta, com bicarbonato e carbonato de sódio, desempenham a mesma função. A Ilustre Casa de Ramires, obra pródiga em referências a antiácidos, menciona-os também: «E enquanto [Gonçalo] se despia, depois de beber aos goles um copo de água com bicarbonato de soda [sic], já martelava a primeira linha do conto […]»; «Oh Bento, ouve lá! Tu não encontraste na mala que eu trouxe de Lisboa, ou no caixote, um frasco de vidro com um pó branco? É um remédio inglês que me deu o Sr. Dr. Matos… Tem um rótulo em inglês, com um nome inglês, não sei que, fruit salt… Quer dizer sal de frutas…»; «Recordou então o famoso fruit salt que lhe recomendara o Dr. Matos, – arrebatou o frasco, correu à sala de jantar, em camisa. E, a arquejar, deitou duas fartas colheradas num copo de água da Bica-Velha, que esvaziou de um trago, na fervura picante. – Ah! que consolo, que rico consolo!…»; «É que passei uma noite horrenda, Bento! Pesadelos, pavores, bulhas, esqueletos… Foram os malditos ovos com chouriço; e o pepino… Sobretudo o pepino! […] Depois, de madrugada, tomei o tal fruit salt, e estou ótimo, homem!… Estou otimíssimo!».
Por recomendação médica, Eça procurou tratamento em 1897 na estância termal francesa de Plombières, nos Vosgos, reputada pelas suas águas sódicas e sulfatadas. Embora a causa da sua morte, em 1900, seja desconhecida, os sintomas relatados nas suas cartas sugerem que terá sofrido de uma amebíase, infeção parasitária então difícil de diagnosticar.
Para concluir, uma dica que poderá ser útil: a água Apollinaris goza da fama de curar as ressacas!