Ainda que poucos anos tenham passado desde o debate em torno da guerra do Iraque de 2003, já poucos se lembrarão das tensões entre os aliados ocidentais, França e Alemanha, que se opunham a uma intervenção, e EUA e Reino Unido, que conduziam o caminho para a guerra. Estes últimos, com apoios em Portugal, Espanha e nos países da Europa central e de leste saídos do Pacto de Varsóvia.
Nesses anos, ficou célebre uma intervenção do então Secretário da Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, que separava a ‘Velha Europa’ da ‘Nova Europa’. Se as expressões utilizadas então por Rumsfeld e pelo presidente George W. Bush em relação aos aliados eram duras, também o foram as posições assumidas pelos ministros dos negócios estrangeiros franceses Hubert Védrine e Dominique de Villepin, bem como do Presidente Chirac e do chanceler Gerhard Schröder, nascendo então o termo ‘hiperpotência’ para qualificar a hegemonia dos EUA na política internacional.
Ainda assim, esta tensão, como as anteriores no seio dos aliados, não foi suficiente para pôr em causa a subsistência da aliança atlântica, provavelmente o maior êxito diplomático da história da política externa dos EUA.
Como é sabido, a vitória na Guerra Fria decorreu muito da capacidade dos EUA organizarem uma teia de alianças de modo a conter o avanço da União Soviética. A NATO/OTAN é, pois, a mais importante dessas alianças.
A solidez de uma aliança depende da confiança das partes entre os membros na mesma. Paralelamente, a pertença a uma aliança militar não oblitera o interesse nacional, devendo esta fazer parte da formulação desse interesse.
Posto isto, a degradação da confiança entre os membros aliança é, pois, a degradação da mesma e condena, no limite, a prossecução do próprio interesse nacional.
As declarações infelizes do presidente eleito Donald Trump sobre uma possível anexação do Canadá e da Groenlândia (território dinamarquês, membro fundador da OTAN) e retoma do controlo do Canal do Panamá enquadram-se no espírito das declarações anteriores, indo, porém, mais longe do que alguma vez um chefe de estado norte-americanos terá ido neste tipo de retórica.
O poder norte-americano depende da confiabilidade dos seus aliados no aliado maior, por forma a estes não recearem o ‘abraço do urso’. A visão de Trump é mais próxima da utilizada numa negociação de ‘soma zero’ do que numa relação de cooperação para ganhos mútuos, conforme a das últimas sete décadas.
Ainda que entenda que se enquadram numa lógica negocial transacional, não sendo totalmente para levar a sério, servem para ser lidas sobre como pode estar morta a ‘superpotência benigna’, pelo que ainda haverá muito a interpretar sobre esta matéria, porque muito há de ser dito e feito.
Acresce, também, que a retórica do outrora poder benigno legitima a lógica revisionista de potências como a China e a Rússia. Como podem as suas pretensões ser questionadas? Só se aplicarmos a incoerência de um duplo padrão de análise.
Trump, numa negociação, parece partir sempre do ponto de procura de ganhos na qual alguém tem de perder. Escrevi, há algum tempo, que uma aliança com estes EUA pouco fiáveis torna-se perigosa. O risco de Trump é esse, enfraquece as relações dos EUA e, com isso, enfraquece quem a ele se alia ou impede que se aliem: ‘Não é com vinagre que se apanham moscas’.