Os telemóveis podiam vir com livro de instruções (úteis)

Tal como os brinquedos, os telemóveis podiam ter inscrita na caixa a indicação de ‘+10 anos’, como idade mínima de utilização.

Cada vez mais, quando chega o Natal, o telemóvel é o presente mais desejado pelos mais novos, o que faz prever que, agora em janeiro, haja ainda mais crianças detentoras do pequeno aparelho.

Um dos últimos estudos feitos a este nível indica que 95% das crianças portuguesas com 10 anos ou mais têm um telemóvel e 34% das crianças com menos de 10 anos também já possuem um.

Embora nem todos os adultos concordem com o uso dos telemóveis por parte das crianças e estejam cada vez mais cientes dos perigos inerentes, por vezes têm dificuldade em resistir a oferecer um, ainda mais depois de tantos anos de súplica – às vezes quase desde o berço.

É importante ter consciência de que um telemóvel não é um presente qualquer. Não é como um brinquedo, um jogo ou sequer uma consola. O telemóvel abre uma porta até então fechada que, de acordo com as características de cada criança, pode ter consequências mais ou menos gravosas.

Tal como os brinquedos, os telemóveis podiam ter inscrita na caixa a indicação de ‘+10 anos’, como idade mínima de utilização. Ainda assim estaríamos a ser condescendentes.

A verdade é que, mesmo na mudança de ciclo, a maioria das crianças não necessita de ter telemóvel, uma vez que os pais as deixam e vão buscar à porta da escola, bem como das atividades. E se houver algum problema durante o período escolar, talvez as escolas já não tenham um ‘PBX’, mas com certeza haverá alguém que fará a chamada aos pais. Possivelmente não dará informações sobre a temperatura nas salas de aula, o que aconteceu no recreio ou o que foi o almoço, mas esse poderá ser um tema de conversa quando todos se reunirem em casa.

Quando uma criança de 10 anos recebe um telemóvel geralmente inicia imediatamente a sua vida nas redes sociais, ainda que raramente com maturidade suficiente para o fazer de forma adequada. Formam-se grupos de turma no WhatsApp, perfis no Instagram e no TikTok e muitas vezes os mais novos ficam por sua conta nesta janela aberta para os outros e para o mundo.

Não é difícil imaginar que, por exemplo, quando se juntam quase 30 crianças de 10 anos num grupo de WhatsApp, nem sempre as conversas serão agradáveis, divertidas ou ordeiras, mas facilmente terão picos de conflito que nem todos conseguirão gerir. Atrás dos telemóveis as conversas adquirem contornos que não têm pessoalmente, dizem-se e mostram-se coisas impensáveis de partilhar frente a frente e podem criar-se subgrupos que se unem contra um ou mais elementos. O conteúdo destas conversas e partilhas pode ser muito inapropriado, agressivo e mesmo cruel. Se se tratar de um ataque, pode ser muito difícil de digerir para quem o recebe, muitas vezes sozinho, sem o abraço do amigo ou o arrependimento de quem do outro lado nem se apercebe das consequências que a sua brincadeira ou atitude pode provocar. Pode até haver partilha de imagens íntimas ou constrangedoras ou de segredos que deixam o lesado muito envergonhado, triste e inquieto. Por isso, a comunicação nestes grupos de crianças naturalmente ainda em desenvolvimento a todos os níveis, pode tornar-se, sem que se apercebam, muito fria e desligada de sentimentos e nociva para alguns elementos, muitas vezes os mais frágeis.

As instruções que vêm com o telemóvel em letras pequeninas raramente são abertas e são inúteis para a maioria dos utilizadores, sobretudo os mais novos. Instruções úteis, e que deviam estar em letras bem grandes, seriam aquelas que dessem orientações simples e práticas para os pais e utilizadores para um uso saudável do aparelho.

Os pais devem estar cientes de que oferecer um telemóvel a um filho não é o mesmo que oferecer um peluche, um carrinho ou uma Barbie com que a criança pode brincar indefinidamente e até dormir. Juntamente com o telemóvel tem de vir um pacote de regras que terão de ser entendidas, cumpridas e respeitadas. Por exemplo, os conteúdos a que as crianças têm acesso na internet devem ser adequados à sua idade, o telemóvel não deve ser utilizado sem limite de tempo, pela noite dentro ou em certas situações e contextos, como durante a refeição. Numa fase inicial também deve haver um acompanhamento na forma como os mais novos usam as redes sociais, de forma a ajudá-los, guiá-los, adverti-los e educá-los a esse nível.

Os telemóveis nunca trarão essas indicações e terão de ser os pais, quando tomam a decisão de permitir que o seu filho receba um, os responsáveis por acompanhá-lo e guiá-lo nes0te processo, nem sempre fácil e pacífico, mas que terá sempre como objetivo o bem-estar das crianças: as suas e também as dos outros.