Função Pública: Um futuro perdido entre disciplinas

Enquanto o mercado de trabalho nos devora, estendemos a mão para a Função Pública. Mas não lhe conseguimos tocar. Na área da cultura, há um futuro que sucumbiu à interdisciplinaridade.

O meu tio-avô passou toda a sua vida na função pública. Ao longo da carreira não terá ficado mais de 10 anos na mesma entidade. Acreditava que era sempre possível passar para uma posição mais favorável, para um posto que encurtasse o tempo até à sua subida de escalão. Nos meandros deste movimento desenfreado, conheceu, como ninguém, os cantos às instituições, à legislação, aos concursos por mobilidade interna. À medida que fui crescendo, esta sua busca incessante por algo que teimava em não chegar foi-se tornando uma espécie de fábula que contava aos meus amigos, a rir-me. Sempre que me via em ocasiões especiais, como aniversários ou natais, prendia-me o braço e perguntava-me se já tinha visto os novos concursos, se já tinha ponderado tornar-me professor. Depois de ter terminado a minha licenciatura, o questionário tornou-se mais agudo, mais urgente: o tempo parecia esvair-se rapidamente. O que interessava era entrar o mais rápido possível para a função pública, fosse como fosse. E o melhor era aproveitar desde logo as vagas para assistente operacional. “Podes começar por varrer as folhas das árvores nas escolas, mas já lá estás dentro. Depois sobes, escalas na carreira”. A nossa interação era de tal forma caricata e monótona que, sem disso me ter apercebido, fui desenvolvendo uma resistência natural a qualquer projeto nesses moldes. Queria escrever, seguir uma carreira criativa, nos meus próprios termos. Nesse sentido, as minhas ambições eram as expectáveis num recém-formado na área da cultura.

Os anos passaram e fui somando as minhas primeiras experiências profissionais longe da função pública. Os empregos não eram os melhores, mas eu estava apenas a começar. À sexta ou sétima tentativa tudo se tornou mais pesado e incerto. Na bagagem, ao fim de 4 anos, já levava comigo uns quantos salários em atraso, uma ou outra experiência de assédio no trabalho e, como pano de fundo, uma ausência completa de perspetivas. Numa clara sobrecompensação por toda esta instabilidade, passei gradualmente a ouvir o meu tio-avô com mais interesse, a prolongar os nossos encontros na rua por mais um ou dois minutos, a partilhar alguns dos seus tiques e projeções menos razoáveis. Rapidamente se instalou a ideia de conseguir um emprego público. Os problemas e as limitações de uma carreira pública mantinham-se, e esta mudança súbita de opinião dizia mais das condições laborais no privado e da minha vulnerabilidade como trabalhador do que de uma qualquer ilusão com um cenário hipotético de perfeição no Estado.

Aquela figura do funcionário público moído, eternamente entorpecido atrás de um balcão ou de uma secretária, prometia, de qualquer forma, uma vida mais saudável e segura do que a imprevisibilidade de uma pequena entidade cultural, movida a egos e a dinheiro em que não me apetecia de todo continuar a chafurdar. Iniciou-se a minha grande cruzada, ainda hoje em curso. Podia convocar mil e uma personagens bizarras da história e dezenas de narrativas que demoveriam qualquer um desta perspetiva de carreira. De clássicos como Little Dorrit, de Charles Dickens, a exemplos menos óbvios, como a trilogia de Margaret Atwood Oryx and Crake, The Year of the Flood e MaddAddam. Mesmo depois de rever alguns destes exemplos trágicos, e de me ter inspirado no convívio com uma vítima clara deste rolo compressor, o emprego público manteve-se como a opção mais válida.

Aprendi a procurar vagas na área da cultura, comecei a perceber que separadores devia abrir todos os dias. Tornou-se um hábito compulsivo, um nervo na ponta do dedo. Durante o período em que trabalhei em entidades privadas, relativizei todas as minhas vocações. À minha formação de base em literatura, juntei cargos como o de gestor de redes sociais, copywriter, técnico de comunicação e marketing, fotógrafo e videógrafo. A literatura, e os seus meios pouco estimulantes, nauseabundos, foram ficando para trás, e passei a acreditar que seria possível manter uma relação marginal com a literatura e com a cultura através de projetos autónomos pontuais. O meu percurso passou a fazer justiça à fama da minha formação multidisciplinar, essa ferramenta que vai variando de acordo com a conveniência. Na lista das saídas profissionais da minha licenciatura já se previa esta diversidade de competências: da tradução ao trabalho de gestão cultural, das relações internacionais ao jornalismo. Todo um universo reunido num código único da CNAEF. Mas nunca nos dizem tudo.

Durante a minha licenciatura, partilhei sala com alunos de muitas outras áreas. De áreas que se tocam, que não podem deixar de se tocar. A teoria da literatura nunca esteve imune às políticas de gestão cultural. A tradução não é uma prática que se propaga num vazio técnico. As fábulas hobbesianas inspiram modelos antropológicos. Olhávamos constantemente uns para os outros. Todos os semestres fazíamos cadeiras e trabalhos juntos. Apesar deste percurso comum, desta possibilidade de convivência de interesses e formações – que é, de resto, um dos grandes motivos de orgulho da instituição -, ao fim de três anos foi-nos atribuído um código da CNAEF diferente, de acordo com a nossa licenciatura. É este código que hoje define a minha exclusão, ou não, dos concursos públicos. Sempre que é anunciada uma vaga na função pública, é definido um código que corresponde ao nível habilitacional exigido para determinada função. Em grande parte dos casos, a alínea que prevê a admissão no concurso de pessoas com outros códigos que não os anunciados no edital – e é quase sempre só um por vaga – é preenchida com um retumbante “não”. Licenciaturas como os Estudos Artísticos, Línguas, Literaturas e Culturas ou Estudos de Cultura e Comunicação Intercultural, assim definidas por defeito de forma a captar uma pretensa interdisciplinaridade difícil de conter, tornam-se perfeitos opostos, percursos incompatíveis, a que correspondem códigos que se excluem mutuamente.

Uma boa parte dos anúncios de emprego público na área da cultura é copiada e publicada sem qualquer revisão séria, insistindo em códigos CNAEF muitas vezes desatualizados, sem correspondência com a oferta atual do Ensino Superior, ou não ajustados à vaga em questão. A possibilidade de admissão de candidatos que detenham uma licenciatura diferente da anunciada no aviso na BEP depende inteiramente da sensibilidade de técnicos que não são obrigados a pensar duas vezes antes de replicar um modelo completamente obsoleto. Tudo se resume a uma alínea a que se escolhe responder com um “sim” ou um “não”. Nesse movimento fortuito, tantas vezes irresponsável, define-se automaticamente a exclusão de centenas de candidatos, perpetua-se uma precariedade que castiga quem concordou com as próprias regras do jogo.

Este é um testemunho que tenta não ignorar questões que permanecerão invariavelmente no seu exterior, como os limites e problemas de uma cultura perfeitamente alinhada com uma política de Estado, ou as tentativas de cooptação, por parte de entidades públicas, de experiências e identidades culturais que se desenvolvem à sua margem, que resistem a uma transparência que as violenta e petrifica, e que gera um valor imediato através da sua exploração. Não é, ao mesmo tempo, mais um tronco para uma fogueira neoliberal inscrita numa tradição desonesta, na linha de um Bureaucracy, do Von Mises, e apoiada num racionalismo que noutros momentos, e com outro tempo, já foi devidamente desmascarado. É um testemunho que surge, precisamente, dos prejuízos da degradação do Estado, das incursões neoliberais mais desenfreadas contra as nossas vidas, contra a nossa dignidade. É um testemunho que exige, ao menos, alguma coerência, algum cuidado. Enfim, algum futuro.

Contra a utilização, nos moldes atuais, do sistema CNAEF nos processos de contratação pública. Pela revisão dos métodos de exclusão de candidatos pelo código CNAEF, mesmo depois de provada a experiência profissional na área.